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sábado, 3 de agosto de 2013

Sobre deuses, espíritos e estupros

Há uns dias atrás minha filha foi assaltada. Ela ia junto com sua amiga à noite para a faculdade quando foi abordada por três indivíduos armados. As duas foram empurradas ao chão e sob a mira de revolver obrigadas a entregar seus pertences. A coisa terminou por aí. Alguns aranhões e umas horas angustiantes na delegacia. Embora nada disso devesse ter ocorrido, ainda temos que agradecer por não haver sido pior. A situação poderia levar a coisas bem mais graves. Entre elas, o estupro. A violência sexual contra mulheres é infelizmente comum em nosso país. Em parte por causa disso a Constituição autoriza o aborto em caso de gravidez originada por um ato de violência sexual. Nessa situação não existe sequer a necessidade de pedir autorização judicial. 

Para regulamentar alguns aspectos legais desse dispositivo constitucional, foi aprovado em plenário pela Câmara e pelo Senado (depois de mais de 13 anos de tramitação!!) um projeto de lei que determina que a rede pública precisa garantir, além do tratamento de lesões físicas e o apoio psicológico, a "profilaxia da gravidez", ou em outras palavras, assegurar acesso a medicamentos como a pílula do dia seguinte. Seria uma forma de prevenir a gravidez forçada e evitar a realização do aborto no futuro. Assim, o projeto apenas autoriza, não impõe nada a ninguém, e trata sobre assunto já decidido pelos poderes constituídos (interromper ou impedir a gravidez em caso de violência sexual).

Católicos e evangélicos são contra a utilização da pílula do dia seguinte porque a consideram abortiva (na realidade ela pode agir mesmo antes de existir a fecundação e bem antes de ocorrer a nidação, não sendo assim abortiva nestes casos). De acordo com suas crenças particulares, seu Deus através do sopro divino insuflou a “alma imortal” que vai se ligar ao ovo fecundado. Fez-nos à sua imagem e semelhança. Assim, por ser uma criação desse Deus, não poderiam os homens interromper o processo mesmo se tratando de estupro ou mesmo tendo o feto anomalias graves como anencefalia. Já os espíritas acreditam que a fecundação resultante do estupro provavelmente fez parte de um “planejamento encarnatório” e o “espírito reencarnante” já se fixa no ato da fecundação mediante um “laço fluídico”.

Estes são exemplos de visões religiosas da concepção. Claro que existem outras religiões (mais de 4000 espalhadas pelo mundo), outras tantas divindades e outras crenças, cada uma com suas lendas, disposições e sistema de valores. Em um Estado laico, por mais primitivos e anticientíficos que possam nos parecer alguns desses pontos de vista temos a obrigação de respeitá-los, sempre e quando não atentem contra os direitos individuais e o estado de direito. Mesmo por que não temos certeza se o nosso ponto de vista é o correto. Assim, acho fundamental que o Estado dê respaldo e assistência à mãe que decide levar em frente sua gravidez, seja esta fruto de estupro ou não, ou mesmo sabendo que o feto sofre anomalias graves.

Mas o que fica patente é que esse respeito que tenho pelo pensamento e pelas opções do religioso, este decididamente não tem pelas minhas.

A tramitação do projeto de lei que citei acima é um exemplo de como esses grupos tentam impor a toda a sociedade (seguidora ou não desses preceitos) suas crenças. Para entrar em vigor o projeto precisaria da aprovação presidencial. Para impedir isto representantes de algumas entidades religiosas e civis se reuniram dias atrás com ministros do governo Dilma Rousseff para exigir seu veto (ver aqui). Caso essa força-tarefa religiosa –que coloca a CNBB, evangélicos e espíritas lado a lado com o infelizmente famoso Feliciano- venha a ter sucesso e o veto aconteça (o atual governo tem sido tão submisso à pressão religioso/eleitoral que não me estranharia), milhares de mulheres vítimas de estupro perderiam a possibilidade de evitar a gravidez originada nesse ato de violência. Para se ter uma ideia dos números, em um único hospital em São Paulo são atendidas em média 15 vítimas de estupro por dia, ou mais de 5400 mulheres por ano. Sim, em um único hospital.

Indignado com esta possibilidade, o médico e escritor Drauzio Varella escreve na sua última coluna no jornal Folha de São Paulo:

“Um Estado laico tem direito de submeter a sociedade inteira a uma minoria de fanáticos decididos a impor suas idiossincrasias e intolerâncias em nome de Deus? Em que documento está registrada a palavra do Criador que os nomeia detentores exclusivos da verdade? Quanto sofrimento humano será necessário para aplacar-lhes a insensibilidade social e a sanha punitiva?”

Quanto?




Em tempo, no dia 01 de agosto, a Presidente Dilma Rousseff sancionou sem vetos o projeto citado neste texto.

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