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sábado, 9 de junho de 2012

Maconha; liberou geral?

A notícia sobre a proposta de descriminalização do plantio, compra e porte de qualquer tipo de droga para uso próprio, sugerida pela comissão de juristas que discute a reforma do Código Penal deixou muita gente para lá de preocupada, e alguns decididamente revoltados.

Embora o assunto seja internacionalmente controverso, o que a comissão fez foi seguir uma tendência mundial e irreversível de não tratar o usuário de drogas como criminoso. Essa política só enche os julgados e as cadeias de jovens que precisariam na realidade de cuidado e atenção, e deixa cada vez mais rico o crime organizado. A proposta tenta assim separar o usuário do traficante e surge ante a constatação mundial que a guerra contra o narcotráfico, da forma que está sendo travada, está perdida.

Neste contexto é importante também entender a diferença entre descriminalizar e legalizar. A descriminalização se refere ao usuário, a legalização ao produto. Descriminalizar é reconhecer o óbvio: usuário não é criminoso. Já legalizar daria à maconha, por exemplo, o mesmo status que têm o cigarro e o álcool (como veremos, drogas mais nocivas que a maconha). A Comissão não sugeriu a legalização (por enquanto, a legalização simples já foi defendida até pela imprensa neoliberal como The Economist).

Com a legalização a venda seria permitida com as restrições de praxe. Os que a defendem alegam entre outras coisas que o Estado poderia arrecadar via impostos o que está indo para o bolso do crime organizado. Este dinheiro “limpo” seria usado em programas –sempre muito caros- de reinserção e desintoxicação de viciados, incluindo aqui os viciados em drogas pesadas.

Outro aspecto a ser levado em conta ao discutir o assunto é a tendência de tratar “drogas” como se todas fossem a mesma coisa. O resultado é sempre ruim. Se dissermos que maconha é igual à cocaína, quem já usou maconha muitas vezes e não teve nenhum efeito de dependência poderá pensar “se é tudo igual e a maconha não me fez nada, por que não experimentar heroína ou crack?”.






Quando uma pessoa fuma maconha, seu ingrediente ativo, o Tetrahidrocanabinol (THC), alcança rapidamente o cérebro. Algumas áreas como as indicadas na figura apresentam uma grande quantidade de receptores para THC, como o núcleo accumbens (NA), núcleo caudado (NC), hipocampo (H), área tegmental ventral (ATV), cerebelo (C) e córtex cerebral (Cx). A grande quantidade de receptores no NC e C explica a perda de coordenação motora produzida pela maconha. Já a ligação no hipocampo explicaria a perda de memória de curta duração e outras alterações cognitivas. A ATV e o NA estão relacionados com a ativação do sistema de recompensa, embora os cientistas ainda não saibam exatamente como a maconha produz a ativação desse sistema (ver figura abaixo).


A figura ilustra a hipotética ação de moléculas de THC sobre o sistema de recompensa (núcleo accumbens). A ação parece ser semelhante à descrita para a cocaína (ver aqui). Neste caso, o THC liga-se num terceiro neurônio (acima à direita), o qual libera um neurotransmissor inibitório (GABA) na sinapse. GABA, por ser inibitório, normalmente inibe a liberação de dopamina no neurônio pré-sináptico (superior esquerda). Na presença de THC, o GABA não é liberado e a liberação de dopamina aumenta por falta de inibição. Assim, uma quantidade maior de dopamina acaba ativando o neurônio pós-sináptico (abaixo na figura).





Não, droga não é tudo a mesma coisa. Ao avaliar o dano que uma droga produz são utilizados geralmente três critérios: o dano físico que ela causa (cérebro, coração, pulmões, etc.); a capacidade que ela tem de produzir dependência; e o dano social que provoca em famílias, comunidades, e sociedades. De acordo com essa avaliação as drogas são classificadas em três grupos, A, B e C, sendo as “A” as mais perigosas.

No mais atualizado e amplo estudo sobre essa avaliação de risco das 20 drogas mais consumidas, os especialistas chegaram a algumas conclusões sobre as quais deveríamos refletir. As drogas ganharam notas que vão de 0 (sem dano) a 3 (dano máximo). A heroína foi a pior de todas, com nota 2,78 no dano físico, 3 na dependência, e 2,54 no dano social, seguida de perto pela cocaína (e crack). Numa lista decrescente de danos e sempre nessa sequência de dano físico, dependência e dano social, barbitúricos obtiveram notas 2,23; 2,01 e 2. Álcool 1,4; 1,93 e 2,21; anfetaminas 1,81; 1,67 e 1,5; tabaco 1,24; 2,21 e 1,42; maconha 0,99; 1,51 e 1,5; ecstasy 1,05; 1,13 e 0,97 (veja tabela abaixo).




O gráfico mostra a posição relativa de cada uma das 20 drogas analisadas no estudo de  Nutt e colaboradores (2007).  As notas de 0 a 3 representam a média para dano físico, dependência e dano social. Observar que álcool e tabaco não são classificadas como drogas ilícitas, porém apresentam médias maiores que algumas drogas consideradas entre as mais perigosas (drogas classe A, em vermelho no gráfico).


A tabela detalha todas as notas de cada uma das 20 drogas analisadas. Clique aqui para a imagem original.





Maconha altera a fertilidade? Ainda não ha dados conclusivos, mas um recente estudo indica  que a mobilidade dos espermatozoides e a fecundidade masculina diminuem em camundongos tratados com THC (aparentemente estes resultados não se aplicam a rastafáris).


O estudo reforça o que já se sabia. Os danos físicos de drogas “legais” como álcool e tabaco são maiores que os da maconha.
Isto significa que devemos usá-la? Pessoalmente desaconselho. Ativar o sistema de recompensa mediante atividades prazerosas básicas como sexo e comida é bem mais saudável. Ainda, embora não estejam comprovados danos a longo prazo – salvo para usuários “pesados” -, sob seus efeitos nossa coordenação motora e memória de curta duração passam a funcionar muito mal. Como esta última é a base de vários processos cognitivos importantes, quando estamos chapados não conseguimos aprender nada e, de forma geral, ficamos incapacitados para as atividades diárias que exigem concentração e raciocínio. Por causa disso a imagem de um usuário de maconha em plena viagem só é divertida para alguém que está viajando junto. Torpe, sem lembrar o que acabou de dizer ou fazer, rindo a toa... Definitivamente, nada parecido com a imagem que fazemos de alguém inteligente. Claro que isto não justifica que o indivíduo deva ir para a cadeia. A imagem do bêbado cambaleante é bem mais deplorável e muitos acham engraçado.

E você, que acha? Descriminaliza, legaliza, libera, ou deixa como está?

Informe-se e opine, antes que decidam por você.



Fonte: Development of a rational scale to assess the harm of drugs of potential misuse. David Nutt, Leslie A King, William Saulsbury, Colin Blakemore. Lancet 2007; 369: 1047–53

Em relação à política sobre consumo de drogas, você é a favor de...