Acho que foi nesse tempo que ela começou a namorar um cara que ela dava encima faz tempo, manco, claro. Manco de verdade. Com perna ortopédica. Até pensei que tinha sido ele que a mandou enfaixar a perna. Mas parece que não foi não... Ficou com esse cara uns dois meses e estava bastante feliz. Bom, nunca a vi tão feliz, mas era só chegar em casa, tirar a faixa e já ficava de cara amarrada na frente do espelho.
Mas acho que a coisa complicou mesmo quando o namoro acabou. Não saia de casa. Fui lá umas duas vezes. A mãe estava aflita. Na vez que estive no quarto dela perguntei Por que vocês brigaram? Ele ficou puto comigo por esse negócio das muletas..., acha que faço por causa dele e ele fica com vergonha..., disse que eu nem sabia a merda que é ser manco de verdade e que eu tinha que parar com essa frescura. Bom, por um lado estava triste pelo fim do namoro, mas pelo menos parou com esse negócio de amarrar a perna. Pensei que as coisas estavam melhorando. Mas aí ela sumiu. Disto faz o que..., uns vinte dias? Imagina a mãe como estava, pensamos em sequestro, chamamos a polícia, tudo..., mas aí uns dias depois ela ligou e falou que estava bem, que não era para se preocupar.
Bom, e é isso, não soubemos mais nada até que chamaram do hospital. Ela já estava em coma. Imagina! A encontraram desmaiada no hotel. O resto você já sabe. O médico disse que ela colocou a perna em gelo seco por muitas horas e que quando chegou no hospital já era tarde. Tentaram amputar mas a gangrena tinha invadido o corpo todo.
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O relato acima é uma ficção, mas construída com fragmentos de casos clínicos reais. Pessoas como Teresa sofrem apotemnofilia, hoje conhecida como desordem de identidade da integridade corporal (DIIC), um transtorno caracterizado pelo desejo de ter algum membro amputado.
No caso do relato acima, a protagonista apresenta dois componentes que nem sempre estão associados: apotemnofilia e a atração sexual por pessoas amputadas (acrotomofilia).
O drama de pessoas com apotemnofilia foi recentemente retratado em filme e colocou em discussão o direito que estas pessoas têm de ver seu desejo atendido. Salvo exceções médicos se recusam a fazer este tipo de amputação. Mas esta negativa é ética? Não é função da medicina acabar com o sofrimento humano?
No caso do relato acima, a protagonista apresenta dois componentes que nem sempre estão associados: apotemnofilia e a atração sexual por pessoas amputadas (acrotomofilia).
O drama de pessoas com apotemnofilia foi recentemente retratado em filme e colocou em discussão o direito que estas pessoas têm de ver seu desejo atendido. Salvo exceções médicos se recusam a fazer este tipo de amputação. Mas esta negativa é ética? Não é função da medicina acabar com o sofrimento humano?
Pacientes com esse transtorno não encontram alívio com nenhum tratamento psicoterápico ou farmacológico, o que os leva a medidas extremas, com as de Teresa. Quando conseguem a amputação (alguns chegam a colocar o membro indesejado baixo as rodas do trem; outros, como Teresa, usam gelo seco para provocar lesões irreversíveis que obriguem a amputação) se sentem realmente felizes com a nova situação.
Recentemente, a neurociência jogou luz sobre este estranho comportamento, motivo que levou à adoção da denominação DIIC (em inglês BIID, body integrity identity disorder) e ser incluída como transtorno neurológico.
Antes de tentar explicar a base biológica do DIIC é necessário lembrar como nosso cérebro cria a imagem do nosso corpo. Usaremos como exemplo a perna de Teresa.
Em condições normais, o cérebro é informado sobre a existência da perna por causa dos receptores que informam sobre a posição, movimento, toque, temperatura, etc. Esses receptores são estruturas microscópicas distribuídas na pele, músculos, articulações, ossos, e outros tecidos. Eles transformam energia mecânica (qualquer toque, beliscão, golpe, estiramento aplicado fora ou dentro da perna) ou térmica na única linguagem que o cérebro é capaz de entender: potenciais elétricos da ordem de milivolts, em um processo denominado transdução. Esses potenciais trafegam através dos nervos e chegando ao cérebro começam a ser processados, atingindo inicialmente as áreas de processamento primário (área somatossensorial primária ou S1, ver figura abaixo). Também os olhos e seus receptores visuais na retina levam ao cérebro informação sobre a perna. Esta informação –agora visual- alcança inicialmente o córtex visual primário (V1). Das áreas primárias S1 e V1, essas informações táteis e visuais alcançam outra região localizada no lobo parietal superior direito (LPSD), onde toda a informação sensitiva se junta com a informação motora (M1) que nos permite movimentar a perna. Só quando a informação é integrada no LPSD é que sentimos a perna como nossa.
Recentemente, a neurociência jogou luz sobre este estranho comportamento, motivo que levou à adoção da denominação DIIC (em inglês BIID, body integrity identity disorder) e ser incluída como transtorno neurológico.
Antes de tentar explicar a base biológica do DIIC é necessário lembrar como nosso cérebro cria a imagem do nosso corpo. Usaremos como exemplo a perna de Teresa.
Em condições normais, o cérebro é informado sobre a existência da perna por causa dos receptores que informam sobre a posição, movimento, toque, temperatura, etc. Esses receptores são estruturas microscópicas distribuídas na pele, músculos, articulações, ossos, e outros tecidos. Eles transformam energia mecânica (qualquer toque, beliscão, golpe, estiramento aplicado fora ou dentro da perna) ou térmica na única linguagem que o cérebro é capaz de entender: potenciais elétricos da ordem de milivolts, em um processo denominado transdução. Esses potenciais trafegam através dos nervos e chegando ao cérebro começam a ser processados, atingindo inicialmente as áreas de processamento primário (área somatossensorial primária ou S1, ver figura abaixo). Também os olhos e seus receptores visuais na retina levam ao cérebro informação sobre a perna. Esta informação –agora visual- alcança inicialmente o córtex visual primário (V1). Das áreas primárias S1 e V1, essas informações táteis e visuais alcançam outra região localizada no lobo parietal superior direito (LPSD), onde toda a informação sensitiva se junta com a informação motora (M1) que nos permite movimentar a perna. Só quando a informação é integrada no LPSD é que sentimos a perna como nossa.
Os cientistas suspeitaram que caso algo perturbasse esse fluxo de informação, a imagem corporal poderia ser comprometida. Para verificar essa possibilidade recrutaram quatro voluntários com DIIC, três desejavam ter sua perna esquerda amputada e um deles as duas. Durante o experimento, estimularam levemente os pés e registraram a atividade elétrica do cérebro usando magnetoencefalografia. As respostas dos pacientes com DIIC foram comparadas com quatro voluntários normais (grupo controle).
Neste grupo controle a estimulação tátil do pé, tanto do direito quanto do esquerdo, levou a uma atividade elétrica típica no LPSD. Nos três voluntários com DIIC que desejavam ter a perna esquerda amputada, a estimulação do pé direito provocou uma atividade elétrica normal no LPSD, enquanto que a estimulação do pé esquerdo não provocou ativação nenhuma. No voluntário que desejava ter ambas as pernas amputadas, nem a estimulação do pé direito nem a do esquerdo foi capaz de provocar qualquer reação no LPSD.
Esses resultados corroboraram a hipótese dos pesquisadores relacionando o DIIC com um funcionamento anormal do LPSD. Nesta situação o cérebro não é capaz de integrar informações sobre a perna e não a incorpora dentro da imagem corporal que ele constrói. Como resultado pacientes com DIIC sentem esse membro redundante e estranho ao corpo, e experimentam um forte desejo de se desfazer dele.
Aparentemente esta deficiência no processamento da informação no LPSD é congênita. A circuitaria cerebral que forma a representação do nosso corpo é formada durante a própria formação do cérebro no ventre materno, e por algum motivo nesses pacientes ela falha. Assim, indivíduos com DIIC sofrem com este transtorno desde a infância, embora não consigam explicar o motivo dessa percepção anômala do próprio corpo. O fato é que não existe ainda nenhum tratamento que corrija este distúrbio. Todos os procedimentos psico ou farmacoterapéuticos falham já que o erro está na própria conectividade cerebral. Atender o desejo do paciente e amputar o membro parece ser a única forma de aliviar seu sofrimento. E realizar o procedimento cirúrgico em condições hospitalares é a única garantia de que tragédias como as de Teresa não continuem a acontecer.
Fontes:
-McGeoch, P.D. et al (2009). Apotemnophilia – the neurological basis of a ‘psychological’ disorder. Nature Precedings DOI: 10101/npre.2009.2954.1.
-The science and ethics of voluntary amputation. Mo Costandi, The Guardian. May 2012