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sábado, 21 de julho de 2012

O estranho desejo de Teresa

Não sei se alguém poderia ter salvado Teresa de uma morte dessas. Está certo que muito equilibrada ela não era, mas olhando de perto, quem é? Se ela sentia atração por homens amputados, qual o problema? Como poderia adivinhar eu que ela faria uma loucura dessas? Está certo..., recentemente ela não apenas sentia atração por caras amputados, como também queria que lhe amputassem a perna. Sim, sim, eu sei, nunca vi..., e agora percebo que quem sabe deveríamos ter feito alguma coisa. Bom, eu fiz, a mandei ao médico. Amiga é para isso. Fui até junto. A conversa no consultório foi uma loucura... Doutor, eu quero amputar minha perna esquerda..., aqui... bem acima do joelho. Como? Qual o problema com sua perna? Está doendo? Não, não dói, mas não quero mais ter minha perna..., sério... acho que eu nunca deveria ter tido..., eu quero que o senhor a ampute. Deixa ver se entendi... sua perna não dói, não tem nenhuma deformidade, ferida, cicatriz..., funciona bem, mas mesmo assim você quer que a amputem? Sim, isso, aqui, bem acima do joelho. Bom, nem preciso dizer que o médico a encaminhou ao psiquiatra, mas ela nunca foi, e olha que eu insisti. O psiquiatra não vai amputar minha perna, não adianta, não vou. E foi isso. Depois de uns dias a encontrei na rua. De muletas!!!! Meu Deus, pensei, ela amputou!!!! Mas não, tinha enfaixado de um jeito que parecia mesmo, tinha até cortado a perna da calça e tudo. Tê, que é que é isso, você ficou louca? Me deixa, eu faço o que eu quero. E foi isso. Andava para cima e para baixo de muletas e com a perna enfaixada, e todo mundo pensando que fosse manca. Antes de chegar em casa escondia as muletas e tirava a faixa para não assustar a mãe, mas ao final já nem se importava.
Acho que foi nesse tempo que ela começou a namorar um cara que ela dava encima faz tempo, manco, claro. Manco de verdade. Com perna ortopédica. Até pensei que tinha sido ele que a mandou enfaixar a perna. Mas parece que não foi não... Ficou com esse cara uns dois meses e estava bastante feliz. Bom, nunca a vi tão feliz, mas era só chegar em casa, tirar a faixa e já ficava de cara amarrada na frente do espelho.
Mas acho que a coisa complicou mesmo quando o namoro acabou. Não saia de casa. Fui lá umas duas vezes. A mãe estava aflita. Na vez que estive no quarto dela perguntei Por que vocês brigaram? Ele ficou puto comigo por esse negócio das muletas..., acha que faço por causa dele e ele fica com vergonha..., disse que eu nem sabia a merda que é ser manco de verdade e que eu tinha que parar com essa frescura. Bom, por um lado estava triste pelo fim do namoro, mas pelo menos parou com esse negócio de amarrar a perna. Pensei que as coisas estavam melhorando. Mas aí ela sumiu. Disto faz o que..., uns vinte dias? Imagina a mãe como estava, pensamos em sequestro, chamamos a polícia, tudo..., mas aí uns dias depois ela ligou e falou que estava bem, que não era para se preocupar.
Bom, e é isso, não soubemos mais nada até que chamaram do hospital. Ela já estava em coma. Imagina! A encontraram desmaiada no hotel. O resto você já sabe. O médico disse que ela colocou a perna em gelo seco por muitas horas e que quando chegou no hospital já era tarde. Tentaram amputar mas a gangrena tinha invadido o corpo todo.



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O relato acima é uma ficção, mas construída com fragmentos de casos clínicos reais. Pessoas como Teresa sofrem apotemnofilia, hoje conhecida como desordem de identidade da integridade corporal (DIIC), um transtorno caracterizado pelo desejo de ter algum membro amputado.

No caso do relato acima, a protagonista apresenta dois componentes que nem sempre estão associados: apotemnofilia e a atração sexual por pessoas amputadas (acrotomofilia).

O drama de pessoas com apotemnofilia foi recentemente retratado em filme e colocou em discussão o direito que estas pessoas têm de ver seu desejo atendido. Salvo exceções médicos se recusam a fazer este tipo de amputação. Mas esta negativa é ética? Não é função da medicina acabar com o sofrimento humano?




Trailer oficial do filme Armless.


Pacientes com esse transtorno não encontram alívio com nenhum tratamento psicoterápico ou farmacológico, o que os leva a medidas extremas, com as de Teresa. Quando conseguem a amputação (alguns chegam a colocar o membro indesejado baixo as rodas do trem; outros, como Teresa, usam gelo seco para provocar lesões irreversíveis que obriguem a amputação) se sentem realmente felizes com a nova situação.

Recentemente, a neurociência jogou luz sobre este estranho comportamento, motivo que levou à adoção da denominação DIIC (em inglês BIID, body integrity identity disorder) e ser incluída como transtorno neurológico.

Antes de tentar explicar a base biológica do DIIC é necessário lembrar como nosso cérebro cria a imagem do nosso corpo. Usaremos como exemplo a perna de Teresa.

Em condições normais, o cérebro é informado sobre a existência da perna por causa dos receptores que informam sobre a posição, movimento, toque, temperatura, etc. Esses receptores são estruturas microscópicas distribuídas na pele, músculos, articulações, ossos, e outros tecidos. Eles transformam energia mecânica (qualquer toque, beliscão, golpe, estiramento aplicado fora ou dentro da perna) ou térmica na única linguagem que o cérebro é capaz de entender: potenciais elétricos da ordem de milivolts, em um processo denominado transdução. Esses potenciais trafegam através dos nervos e chegando ao cérebro começam a ser processados, atingindo inicialmente as áreas de processamento primário (área somatossensorial primária ou S1, ver figura abaixo). Também os olhos e seus receptores visuais na retina levam ao cérebro informação sobre a perna. Esta informação –agora visual- alcança inicialmente o córtex visual primário (V1). Das áreas primárias S1 e V1, essas informações táteis e visuais alcançam outra região localizada no lobo parietal superior direito (LPSD), onde toda a informação sensitiva se junta com a informação motora (M1) que nos permite movimentar a perna. Só quando a informação é integrada no LPSD é que sentimos a perna como nossa.


Nesta vista lateral do encéfalo humano foram representadas as áreas somatossensorial primária (S1), visual primária (V1) e motora primária (M1). Todas enviam informação para a região do lobo parietal superior direito (LPSD). No LPSD a informação sobre cada parte do corpo é integrada de forma a construir o mapa corporal. Em casos de DIIC, o fluxo de informação ou o processamento no LPSD está comprometido, o que leva à rejeição de determinadas partes do corpo. Detalhes no texto.




Os cientistas suspeitaram que caso algo perturbasse esse fluxo de informação, a imagem corporal poderia ser comprometida. Para verificar essa possibilidade recrutaram quatro voluntários com DIIC, três desejavam ter sua perna esquerda amputada e um deles as duas. Durante o experimento, estimularam levemente os pés e registraram a atividade elétrica do cérebro usando magnetoencefalografia. As respostas dos pacientes com DIIC foram comparadas com quatro voluntários normais (grupo controle).

Neste grupo controle a estimulação tátil do pé, tanto do direito quanto do esquerdo, levou a uma atividade elétrica típica no LPSD. Nos três voluntários com DIIC que desejavam ter a perna esquerda amputada, a estimulação do pé direito provocou uma atividade elétrica normal no LPSD, enquanto que a estimulação do pé esquerdo não provocou ativação nenhuma. No voluntário que desejava ter ambas as pernas amputadas, nem a estimulação do pé direito nem a do esquerdo foi capaz de provocar qualquer reação no LPSD.


Imagem magnetoencefalográfica da vista superior do hemisfério cerebral direito. No círculo amarelo a região do LPSD. AS figuras A e B representam os indivíduos controle. Em C se observa ativação de um indivíduo com DIIC após estimulação do pé "normal" e em D não se observa atividade nenhuma ao estimular o pé que o paciente desejava ver amputado. Maiores detalhes no texto (McGeoch, P.D. e cols., 2009).



Esses resultados corroboraram a hipótese dos pesquisadores relacionando o DIIC com um funcionamento anormal do LPSD. Nesta situação o cérebro não é capaz de integrar informações sobre a perna e não a incorpora dentro da imagem corporal que ele constrói. Como resultado pacientes com DIIC sentem esse membro redundante e estranho ao corpo, e experimentam um forte desejo de se desfazer dele.

Aparentemente esta deficiência no processamento da informação no LPSD é congênita. A circuitaria cerebral que forma a representação do nosso corpo é formada durante a própria formação do cérebro no ventre materno, e por algum motivo nesses pacientes ela falha. Assim, indivíduos com DIIC sofrem com este transtorno desde a infância, embora não consigam explicar o motivo dessa percepção anômala do próprio corpo. O fato é que não existe ainda nenhum tratamento que corrija este distúrbio. Todos os procedimentos psico ou farmacoterapéuticos falham já que o erro está na própria conectividade cerebral. Atender o desejo do paciente e amputar o membro parece ser a única forma de aliviar seu sofrimento. E realizar o procedimento cirúrgico em condições hospitalares é a única garantia de que tragédias como as de Teresa não continuem a acontecer.




Fontes:
-McGeoch, P.D. et al (2009). Apotemnophilia – the neurological basis of a ‘psychological’ disorder. Nature Precedings DOI: 10101/npre.2009.2954.1.
-The science and ethics of voluntary amputation. Mo Costandi, The Guardian. May 2012
  



sexta-feira, 13 de julho de 2012

segunda-feira, 9 de julho de 2012

VS Ramachandran: Os neurônios que moldaram a civilização

Aos visitantes do blog da Coluna Ciência: começamos a disponibilizar aqui todos os vídeos da TED sobre cérebro (por enquanto), com legendas em português.
Desfrutem!!!!


Neste vídeo "O neurocientista Vilayanur Ramachandran delineia as fascinantes funções dos neurônios-espelho. Descobertos recentemente, esses neurônios nos permitem aprender comportamentos sociais complexos, alguns dos quais constituíram os fundamentos da civilização humana como nós a conhecemos."



sábado, 7 de julho de 2012

Casamento gay

Duas fêmeas da espécie Laysan albatross. Cooperativamente
 constroem o ninho e chocam os ovos quando os
machos escasseiam. (Foto: Eric VanderWerf)
Ainda na esteira do primeiro casamento homoafetivo em nossa cidade, volto ao assunto da homossexualidade já abordado nesta coluna tempos atrás. Naquela oportunidade mencionamos os resultados de um estudo que mostrava que a anatomia e circuitaria do cérebro de indivíduos homossexuais tinham semelhanças com a anatomia e circuitaria do cérebro de indivíduos heterossexuais do sexo oposto, o que de alguma forma indicaria uma predisposição biológica para a homossexualidade.

Mas em relação ao casamento homoafetivo a ciência tem pouco a dizer. O assunto geralmente resvala para discutíveis aspectos éticos e a metodologia científica não tem –por enquanto- mecanismos para pesquisar o que é ético ou não. Basicamente a questão se restringe à discussão dos direitos individuais dentro de um estado laico e democrático, e do direito que algumas pessoas e denominações religiosas se autoconcedem para palpitar sobre como os outros devem viver suas vidas. Na melhor das hipóteses, a ciência pode em alguns casos analisar os argumentos utilizados a favor ou contra determinadas práticas, sempre que estes invadam a área onde ela trabalha. 


Por exemplo, um dos argumentos mais ouvidos nesse debate é que “Atos homossexuais são contrários à lei natural (...). (...) não podem em caso algum ser aprovados.”. Esta premissa procede dos documentos da igreja católica – originados do famoso peccatum contra naturam - e deveria servir de orientação aos que espontaneamente optam por pertencer a essa denominação religiosa. Fora do contexto religioso o conceito “natural” é questionável.

A sodomia provocando a ira de Deus.
(François-Rolland Elluin, Gli abitanti di Sodoma provocano l'ira divina.
Incisione per l'opera libertina Le Pot-Pourri de Loth in Cantiques et pots-pourris; 1789).


Práticas homossexuais foram comuns ao longo da história da humanidade, sendo ainda aceitas em várias culturas. Atividades homossexuais foram observadas em aproximadamente 1.500 espécies animais, e bem descritas em umas 500, incluindo aqui golfinhos e primatas bonobos, macacos com os quais compartilhamos mais de 98% da carga genética. Este fato inclusive foi utilizado como argumento para a justiça norte-americana invalidar em 2003 todas as leis que ainda puniam a sodomia. 
Já se a expressão “não natural” se refere ao fato de não ter finalidade reprodutiva, a enorme maioria das práticas heterossexuais, dentro e fora do casamento, também deveria ser incluída nesta classificação.


Por outra parte, mesmo que aceitássemos o argumento da “não naturalidade”, resultaria arbitrário condenar o matrimônio entre pessoas do mesmo sexo e aceitar o matrimônio monogâmico. A monogamia é reconhecidamente não natural já que reduz o número de descendentes que cada macho pode ter, a seleção dos machos mais aptos (em condições naturais fêmeas preferem compartilhar um macho melhor dotado geneticamente a ter um macho "inferior" só para elas), e assim a diversidade genética, sendo por isso observada em apenas pouquíssimas espécies. Hoje temos evidências bastante sólidas que indicam que o Homo sapiens foi poligâmico por mais de 99% da sua história evolutiva, e ainda o é em várias culturas. Se a monogamia é atualmente o modelo mais comum não é porque seja natural e sim porque é socialmente conveniente. 
Assim a premissa da “não naturalidade” não apenas carece de respaldo nas evidências como soa bastante arbitrária. 


Filhos criados por casais homossexuais sofrem desajustes psicológicos.” Este argumento é um desses que -intuitivamente- parece ter tudo a ver, mas quando analisamos objetivamente, não tem nada a ver. Já existem vários estudos em diversos países e culturas que indicam de forma bastante clara que pais homossexuais são tão aptos para criar seus filhos quanto pais heterossexuais, e que psicologicamente seus filhos são tão sadios e bem ajustados quanto os filhos de casais heterossexuais. A saúde psicológica da criança se relaciona com os exemplos que recebe. Se estes direcionarem sua formação no caminho da tolerância, o respeito, a generosidade e a empatia, a chance de criar adultos saudáveis será maior, sejam os pais homo ou heterossexuais. 


Enfim, provavelmente toda esta análise científica é um blá-blá-blá desnecessário. Quem somos qualquer um de nós para palpitar sobre como outros devem viver suas vidas? Algumas décadas atrás o divórcio era uma verdadeira afronta à sociedade e à moral de nossas famílias. Hoje casais infelizes tem a chance de recomeçar suas vidas em 24 horas. 

O que sim deveria preocupar, principalmente àqueles que de alguma forma participam dessa pregação anti-qualquer-coisa-gay, é que o Brasil é o país onde mais se mata homossexuais no mundo. 
Gostemos ou não, a enorme maioria das pessoas por estas bandas ainda leva muito a sério o que é dito desde os púlpitos, geralmente desde onde partem os ataques mais contundentes ao casamento homoafetivo. Não podemos esquecer que quando se incentiva o discurso homofóbico se alimenta o que há de mais obscuro em nossa intolerância atávica. Até que ponto essa pregação pode induzir às ações violentas que nos colocam nessa vergonhosa posição mundial, é algo sobre o qual muitos deveriam refletir. Fora e dentro dos templos.


Fontes
-Bailey et al. Same-sex sexual behavior and evolution. Trends in Ecology & Evolution, Volume 24, Issue 8, August 2009, Pages 439–446, 2009
-University of California - Riverside (2009, June 16). Same-sex Behavior Seen In Nearly All Animals, Review Finds. ScienceDaily. Retrieved

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