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sábado, 21 de março de 2015

Com dor darás à luz.

De acordo com o mito cosmogônico judaico-cristão, Deus, irritado por Eva ter ouvido os conselhos de uma cobra falante e ter comido os frutos “da árvore que está no meio do jardim” –coisa que ele terminantemente proibira-, num ataque de ira a teria condenado nos seguintes termos: “Multiplicarei grandemente a tua dor, e a tua conceição; com dor darás à luz filhos; (...).” (Gênesis 3:16).

Lendas à parte, há algo de errado no parto das fêmeas humanas. Quem como eu foi criado no campo vendo ovelhas parirem sem grande esforço aparente (mal paravam de pastar), não deixa de ficar impressionado com o esforço e sofrimento que geralmente acompanha o parto vaginal humano. 


A resposta para esse tormento todo está nas alterações anatômicas decorrentes dos processos evolutivos, fundamentalmente por sermos a única espécie entre os mamíferos que adotou o bipedalismo completo.


Sem sinais comportamentais de dor, nos mamíferos, de forma geral, o parto é um processo simples
 que praticamente não altera a rotina dos animais.


Já descrevemos nesta coluna as consequências desse processo sobre estruturas como nossos pés e coluna vertebral, consequências que os especialistas denominam “cicatrizes da evolução”. Fora pés e coluna, os ossos da bacia tiveram também que modificar sua anatomia para tornar o bipedalismo eficiente. 

Em relação aos nossos primos mais próximos, os chimpanzés, nossa bacia encurtou longitudinalmente e se estendeu lateralmente. Para estabilizar o torso na posição ereta os músculos glúteos se tornaram bem mais desenvolvidos e exigiram uma maior área de inserção no quadril (nenhum outro mamífero tem nádegas tão avantajadas quanto as nossas), o que levou a uma lateralização da região ilíaca. O sacro, que forma junto com o cóccix a parte inferior da coluna vertebral, se afastou em direção posterior e as espinhas isquiáticas, localizadas na porção inferior da pelve se deslocaram em direção ao centro do corpo para permitir a inserção dos ligamentos que formam o soalho da cavidade pélvica, mas estreitando ainda mais o “canal do parto”.



À esquerda, pelve óssea do chimpanzé e à direita a pelve humana (Wittman e cols., 2007).  


O resultado de tudo isso foi uma bacia relativamente bem adaptada para caminhar sobre duas pernas mas muito estreita para dar passagem ao feto humano. Este também sofreu as consequências do outro processo evolutivo bem posterior ao bipedalismo, a encefalização. O cérebro do feto humano foi aumentando de tamanho em relação ao dos outros primatas. 

Com o estreitamento do canal do parto provocado pelo bipedalismo e o aumento do tamanho do crânio devido ao processo de encefalização, temos – e apenas nos humanos- a denominada desproporção cefalopélvica, uma cabeça grande e uma pelve estreita, que em muitos casos leva à obstrução na hora do nascimento (distócia) e complicações obstétricas catastróficas -se não houver meios para um tratamento adequado-, tanto para a mãe como para o feto, incluindo ruptura uterina, fístula vesicovaginal entre outras graves complicações.


A origem do problema. Em cinza o crânio do feto dentro do anel pélvico. Observar que em Pongo (orangotango), Pan (chimpanzé) e nos gorilas, o tamanho do crânio fetal é bem menor que o anel pélvico materno. Já nos humanos a situação é crítica (Weiner e cols., 2008).


Para contornar estas dificuldades o mecanismo do parto humano tornou-se um processo demorado, exigindo do feto um verdadeiro contorcionismo. Ao longo do nascimento o bebê tem que ir girando para que o longo eixo da sua cabeça fique sempre alinhado com o longo eixo do canal, que vai mudando conforme o feto vai descendo. Se tudo der certo ele nasce “olhando para as nádegas” da mãe, numa postura que impossibilita que esta o segure e desobstrua as vias respiratórias do recém-nascido, como outros primatas fazem. Depois que a cabeça emerge, são os ombros que devem se alinhar ao longo eixo da pelve materna, uma manobra também bastante complicada. Nenhum outro bebê primata tem esse trabalho.

Outro recurso para fugir do problema causado pela desproporção cefalopélvica é nascer antes da hora. Isso mesmo; para que nossos filhotes nascessem com uma maturidade encefálico-cognitiva comparável aos outros macacos a duração da nossa gravidez deveria ser bem superior que os atuais nove meses. Claro que se isto acontecesse a cabeça cresceria muito e o parto vaginal seria inviável. O nascimento de nossos filhotes nesse estado de fragilidade, dependência total e imaturidade cerebral acaba exigindo um cuidado e dedicação intensa das mães por um período bem mais prolongado que o observado em outros mamíferos.

Em virtude destas dificuldades, sem os recursos médicos apropriados que se tornaram disponíveis apenas a partir do século 20, entre 20 a 25% dos nascimentos humanos ao longo da nossa história evolutiva terminaram com a morte da mãe ou do filho. Ainda no século 20 o índice de morte materna por causa do parto chega a 30% entre algumas populações sem acesso a recursos médicos. Sim, esses números são desastrosos e, claro, colocam em péssimos lençóis os que ainda defendem a existência de um “Designer” minimamente inteligente.

Por outra parte, as dificuldades obstétricas causadas pela desproporção cefalopélvica levaram alguns pesquisadores a sugerir que, quem sabe, a cesariana –com todos seus inconvenientes- seria a solução ao dilema, uma solução saída do grande cérebro que tanto contribuiu para criar o problema.




Fontes:

-The Evolutionary Origins of Obstructed Labor: Bipedalism, Encephalization, and the Human Obstetric Dilemma; Wittman, A.B. e cols., OBSTETRICAL AND GYNECOLOGICAL SURVEY; Volume 62, Number 11O; 2007

-Bipedalism and Parturition: an Evolutionary Imperative for Cesarean Delivery? Weiner, S. e cols., Clin Perinatol 35 (2008) 469–478 doi:10.1016/j.clp.2008.06.003