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domingo, 31 de março de 2013

A homossexualidade sob a lupa da ciência - II (ou por que Malafaia está errado)


(Credit: iStockphoto/Salon)
Dias atrás acompanhei pelas redes sociais, meio a contragosto, um debate sobre homossexualidade e ciência. De um lado o biólogo Elí Vieira, do outro o pastor Silas Malafaia. Um dos argumentos utilizados por este último é que ao não existir um “gene da homossexualidade” esta seria uma opção individual motivada por traumas na infância, imposição cultural, entre outras possibilidades.

O pastor não está completamente errado. De fato, até agora não foi identificado um gene que esteja diretamente relacionado com a homossexualidade. E mais, esta é difícil de ser explicada desde o ponto de vista evolutivo. Se optarmos por parceiros do mesmo sexo não teremos descendentes e com isso nossos genes não passarão adiante.

Mas o fato é que a homossexualidade existe e sempre existiu na história da humanidade, como explicá-la então? Com explicar biologicamente a preferência por uma pessoa do mesmo sexo na falta desses dois ingredientes básicos?

Aí que está a falha do pastor. A não existência de um gene para a homossexualidade não significa que esta não possa ter um cunho genético. Vejamos por que.

Como sabemos, cada célula de nosso corpo tem uma dupla hélice de DNA e nela estão contidos todos os genes. Cada gene tem a receita para tudo que nosso corpo é ou faz. Isto vai desde a cor da pele, olhos, nossa anatomia, fisiologia, o controle de outros genes e até boa parte do nosso comportamento.

Um exemplo, em nosso DNA existe um gene responsável pela produção de insulina. Assim, células no pâncreas produzem essa proteína que é fundamental para controlar os níveis de açúcar no sangue. Quando essas células falham o nível de insulina cai e surgem doenças metabólicas como a diabetes. Se bem é fundamental que as células do pâncreas produzam insulina, não seria recomendável que células musculares que fazem o coração bater também o fizessem. Mas estas também têm os genes para produzir insulina, por que então as células do pâncreas produzem e as do coração não?

Cientistas descobriram que ao redor da molécula de DNA existe uma “nuvem” de proteínas que tem como função ligar e desligar certos genes. Essas proteínas recebem o nome de marcadores epigenéticos (MEs). São eles que determinam se um gene vai estar ativo ou não. No pâncreas eles ligam o gene para produzir insulina, no coração e outros órgãos eles o desligam. Assim, a ação dos MEs passa a ser quase tão importante quanto os próprios genes.

À diferença dos genes, que passam de pais para filhos, acreditava-se que os MEs eram zerados na hora da formação de um novo ser (no momento da fecundação). Mas nos últimos anos ficou claro que em alguns casos a informação epigenética não é completamente eliminada e algo passa para os descendentes.

Isso tem consequências importantes. MEs podem ser formados em resposta a acontecimentos específicos durante a vida do indivíduo. Em situações de fome intensa, por exemplo, podem ativar genes que potencializem o aproveitamento da pouca comida que é ingerida. Se esses MEs passam para o filho, os genes deste também serão ativados de forma que uma dieta normal poderá gerar um quadro de obesidade (no filho), já que os genes –ativados pelos MEs paternos- continuarão passando a instrução de aproveitar ao máximo cada grama de alimento ingerido.

Em um artigo recente cientistas postularam que este mecanismo poderia também estar implicado com aspectos de preferência sexual. Em situações normais, o embrião em formação cria MEs que o protegem da flutuação dos níveis de testosterona da mãe. Altos níveis de testosterona durante a gravidez podem masculinizar embriões femininos, e da mesma forma baixos níveis de testosterona feminizar embriões masculinos afetando a conformação dos genitais e até a preferência por parceiros sexuais na vida adulta. 
Assim, MEs trabalham ligando e desligando genes para neutralizar os possíveis efeitos nocivos da flutuação de testosterona. 
Mas o que aconteceria se MEs do pai fossem transferidos à filha em gestação, ou os da mãe ao filho?  Neste caso sob a ação dos MEs paternos genes “masculinizantes” seriam ativados na filha, ou no caso oposto, MEs da mãe ativariam no filho genes feminizantes. As consequências seriam óbvias.

É isso aí, mesmo não havendo gene da homossexualidade esta sim poderia ser resultado da ação dos genes em conjunto com MEs. O mecanismo é simples e o insight dos cientistas ao entendê-lo, brilhante.

Claro que isto não vai mudar a opinião de quem está utilizando a ciência apenas para defender suas crenças. E, mais importante, se bem a explicação científica é fascinante, o recado que mais interessa é que, simplesmente, não temos o direito de determinar como os outros devem viver suas vidas. Não podemos de forma alguma negar direitos constitucionais em virtude de etnia, crença, orientação sexual... Não podemos trocar o Estado de Direito previsto na Constituição pelas orientações dos livros religiosos.

Assim de simples.

Fontes:
1 - William R. Rice, Urban Friberg, and Sergey Gavrilets. Homosexuality as a Consequence of Epigenetically Canalized Sexual Development. The Quarterly Review of Biology, 2012; 87 (4)
2 - J. A. Hackett, R. Sengupta, J. J. Zylicz, K. Murakami, C. Lee, T. A. Down, M. A. Surani. Germline DNA Demethylation Dynamics and Imprint Erasure Through 5-Hydroxymethylcytosine. Science, 2012; DOI: 10.1126/science.1229277

sexta-feira, 15 de março de 2013

Religiosidade, espiritualidade e ciência


Para aqueles que se preocupam com a laicidade do Estado, estes dias têm sido perturbadores. Apesar da separação constitucional, grupos religiosos avançam aceleradamente sobre a coisa pública não poupando nenhum dos três poderes. Desta vez chegamos ao paradoxo de um deputado/pastor, mediante as costumeiras armações político partidárias, ter sido eleito presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara. O fato não é absurdo por se tratar de um pastor, é absurdo porque como cidadão expressou reiteradamente opiniões de cunho homofóbico e racista, amparado numa visão literal da bíblia. Sua eleição para presidir uma comissão como essa, que entre outras coisas deveria zelar pelo respeito constitucional justamente aos grupos que ele ostensivamente desmerece, me fez lembrar a imagem da raposa tomando conta do galinheiro.

O avanço religioso na esfera política não é, entretanto, um problema apenas observado no Brasil. Se bem no Japão e Europa a influência religiosa é cada vez menor na medida em que se caminha em direção à secularização do estado, nos Estados Unidos grupos religiosos se organizam para impor a toda a população uma agenda anticientífica e conservadora - algo muito semelhante ao que ocorre no Brasil- que deveria ser optativa apenas para os fieis seguidores desta ou aquela denominação religiosa.

Interessados em entender esse fenômeno, pesquisadores da Universidade de Toronto (Canadá) realizaram um estudo tentando correlacionar os conceitos de religiosidade (entendida aqui como a prática religiosa associada a instituições bem estabelecidas e sustentada em rígidos sistemas de crenças, com um incondicional respeito à tradição e à autoridade) e espiritualidade (prática associada com uma experiência individual subjetiva do sagrado e com limites entre o indivíduo e o mundo menos rigidamente definidos), com comportamentos considerados de direita (conservadores) ou de esquerda (liberais).

O estudo foi realizado numa amostra de mais de 1200 indivíduos, canadenses e estadunidenses, onde mediante questionários padronizados foi possível identificar sua posição religiosa, perfil psicológico e opção política.

Os autores observaram que quanto mais forte o nível de religiosidade, maior o conservadorismo e apoio a ideologias do tipo “nós contra eles”. Já aqueles com um perfil “espiritualizado” demonstraram tendências liberalizantes, provavelmente devido a uma visão mais abrangente da sua posição no mundo e sua conexão com ele.

A segunda parte do experimento tentou verificar se experiências espirituais poderiam de alguma forma reverter posturas mais conservadoras e menos igualitárias. Para isto, os participantes realizaram um exercício guiado de meditação, mediante a visualização de um vídeo de quatro minutos onde foi solicitado que fechassem os olhos, respirassem profundamente e se imaginassem conectados a um ambiente natural. Posteriormente responderam um questionário que avaliou suas atitudes políticas. O grupo controle respondeu o mesmo questionário sem o exercício meditativo.

Os resultados mostraram que os participantes da meditação apresentaram uma postura bem mais liberal e solidária que os participantes do grupo controle, mesmo aqueles que inicialmente tinham mostrado um perfil religioso/conservador.

O estudo dá alguns indícios importantes sobre como a incorporação pouco crítica de conceitos religiosos, fenômeno que se observa naqueles que possuem uma visão literal dos livros sagrados e que parece ser o caso do pastor/deputado- leva a posturas políticas conservadoras e intolerantes. Estudos anteriores já tinham evidenciado que a consolidação (priming) de conceitos religiosos poderia aumentar prejuízos raciais, o que está também associado com o conservadorismo político.

Ao mesmo tempo, o estudo oferece indícios sobre como experiências cognitivas específicas, como a meditação, podem ser capazes de alterar padrões comportamentais já bastante arraigados. De fato, a mudança para uma postura mais liberal apresentada pelos voluntários religiosos/conservadores após a realização da prática meditativa indica que, quem sabe, possa existir uma luz no fim do túnel da intolerância religiosa.

Resta saber se os intolerantes estão dispostos a seguir esse caminho.


Fonte: Spiritual Liberals and Religious Conservatives. Hirsh, JB e cols; Social Psychological and Personality Science; 4: 14, 2013




Apenas uma observação que não coube na versão impressa. No texto original do artigo citado nesta postagem, os autores mencionam esta definição de “espiritualidade”...


“... Conversely, spirituality is associated with the experience of self-transcendence described in mystical traditions, where the boundaries between the self and the world become less rigidly defined (Hood, 1975; Spilka, Hood, Hunsberger, & Gorsuch, 2003).”

Assim, de acordo com os autores citados, o conceito de espiritualidade está atrelado a uma visão mística da realidade. Discordo, e o faço colocando aqui um trecho do grande Carl:



" “Espírito” vem da palavra latina que significa “respirar”. O que respiramos é o ar, que é certamente matéria, por mais fina que seja. Apesar do uso em contrário, não há na palavra “espiritual” nenhuma inferência necessária de que estamos falando de algo que não seja matéria (inclusive aquela de que é feito o cérebro), ou de algo que esteja fora do domínio da ciência. De vez em quando, sinto-me livre para empregar a palavra.

A ciência não é só compatível com a espiritualidade; é uma profunda fonte de espiritualidade. Quando reconhecemos nosso lugar na imensidão de anos-luz e no transcorrer das eras, quando compreendemos a complexidade, a beleza e a sutileza da vida, então o sentimento sublime, misto de júbilo e humildade, é certamente espiritual. Como também são espirituais as nossas emoções diante da grande arte, música ou literatura, ou de atos de coragem altruísta exemplar como os de Mahatma Gandhi ou Martin Luther King.

A noção de que a ciência e a espiritualidade são de alguma maneira mutuamente exclusivas presta um desserviço a ambas."


Carl Sagan, O mundo assombrado pelos demônios.








(Se precisar, ative a legenda. Vale a pena.)
MP3 available at http://www.symphonyofscience.com
"We Are All Connected" was made from sampling Carl Sagan's Cosmos, The History Channel's Universe series, Richard Feynman's 1983 interviews, Neil deGrasse Tyson's cosmic sermon, and Bill Nye's Eyes of Nye Series, plus added visuals from The Elegant Universe (NOVA), Stephen Hawking's Universe, Cosmos, the Powers of 10, and more. It is a tribute to great minds of science, intended to spread scientific knowledge and philosophy through the medium of music.



quarta-feira, 6 de março de 2013

Deus e a pata do avestruz

Quando criança me ensinaram que nosso corpo era o suprassumo da perfeição. Uma máquina ideal, o que não poderia ser diferente já que éramos criados à imagem e semelhança de Deus.

Os anos passaram, os mitos cosmogônicos deram lugar a uma visão mais real do nosso lugar no mundo - baseada em evidências - mas não por isso menos fascinante que as diversas lendas criacionistas. Claro que Darwin, o aniversariante do último dia 12 de fevereiro, teve muito a ver com isso.

No passado dia 15 de fevereiro no Congresso Anual da Associação Americana para o Progresso da Ciência (AAAS) um grupo de especialistas se reuniu para tratar das imperfeições da nossa “máquina perfeita”, ou melhor, das cicatrizes deixadas pela nossa história evolutiva, cicatrizes que trazem consequências clínicas importantes nos dias de hoje.
No painel foram apresentados vários exemplos desses problemas evolutivos. Por falta de espaço, focaremos apenas um, o mais básico, o pé.

Antes de entender por que nosso pé não é nada perfeito – para desespero dos criacionistas do Design Inteligente-, temos que conhecer sua história evolutiva. 
Até cinco milhões de anos atrás nossos ancestrais raramente se aventuravam fora das árvores. O pé tinha evoluído para uma função principal: segurar nos galhos. Sua anatomia estava bastante bem adaptada para essa função. Mais de 25 ossos unidos por mais de 30 articulações, hálux (dedão) opositor fazendo pés e mãos bastante semelhantes, e centenas de músculos, tendões e ligamentos, davam ao pé a flexibilidade necessária para pular de galho em galho com destreza e segurança.




O pé do chimpanzé preserva caraterísticas de nossos ancestrais comuns de 5 milhões de anos atrás. 
O hálux é opositor, o que ainda lhe permite subir nas árvores com bastante facilidade  mesmo levando
 uma vida fundamentalmente terrestre. Já nosso pé teve que se adaptar rapidamente para a postura completamente bípede.

Mas há uns cinco milhões de anos alguns desses primatas arborícolas decidiram se aventurar no solo conquistando um riquíssimo e inexplorado nicho ecológico. Nossos ancestrais se adaptaram a essa vida e paulatinamente adotaram uma postura ereta. Relacionado a esse fato ocorreu uma revolução: as mãos foram liberadas e com um cérebro em rápida expansão tornaram-se as ferramentas indispensáveis para criar toda a tecnologia associada ao Homo sapiens.

Estes eventos nos tornaram os primatas mais bem sucedidos do planeta. Rondando a casa dos sete bilhões, com uma enorme capacidade de adaptação, capazes de pensamentos abstratos e, graças ao nosso cérebro tão desenvolvido, possuidores de uma mente única.
Entretanto, essas conquistas que nos ajudaram a tornar-nos o que somos tiveram seu preço. Nosso pé teve que se ajustar à nova função: apoio e propulsão. A evolução teve que trabalhar a partir do material já existente para, em um período relativamente curto, transformar um pé bem adaptado à vida sobre as árvores para caminhar, sustentar e correr. Não foi fácil. O material era o mesmo, ossos demais, articulações demais, enfim, uma estrutura pouco estável.

Nosso hálux foi diminuindo e se reposicionando. Ter um pé parecido com a mão já não servia de nada. Ossos do tarso e metatarso formaram um arco para compensar o impacto. O resultado é esse que já conhecemos. Um pé preparado às presas para a nova função que o deixou propenso a entorses de tornozelo, fascite plantar, tendinite de Aquiles, dores nas pernas e tornozelos quebrados. E estes não são problemas modernos relacionados ao uso do salto alto. Fósseis mostram problemas semelhantes já ha três milhões de anos. Como comentam os especialistas do painel, se tivéssemos que planejar um pé humano ideal, certamente não seria esse.

Mas qual seria? De acordo com os mesmos especialistas, e por incrível que pareça, o pé ideal para um bípede como nós, seria o da avestruz. Os 13 ossos que compõem o tarso e metatarso humano foram simplificados para apenas um único osso, o tarsometatarso. Em vez de cinco dedos com suas respectivas 14 falanges, o avestruz possui apenas dois dedos. Este prodígio de simplicidade lhe permite correr por longas distâncias a quase 70 km/h suportando um corpo de mais de 100 quilos.


À direita, uma pata de avestruz, à esquerda, um pé humano. Destacado em cor laranja nossos ossos do tarso e metatarso (13 ossos) e o correspondente único osso da avestruz (tarsometatarso).  Foram necessários 230 milhões de anos para que a pata do avestruz alcançasse esse solução evolutiva, simples e completamente adaptada à função de apoiar, caminhar e correr.  Como nosso pé evoluiu inicialmente para a função de segurar nos galhos, seu passado evolutivo não o torna tão bem adaptado à posição ereta. Um bom exemplo para mostrar que a evolução não nos torna mais inteligentes, fortes ou bonitos, apenas bem adaptados ao meio em que vivemos.

A pergunta que fica, por que a avestruz tem um pé tão bem adaptado e nós não? Só podemos encontrar uma resposta razoável se olhamos desde uma perspectiva evolutiva. Avestruzes, como todas as aves – representantes atuais dos dinossauros – começaram sua jornada bípede há mais de 230 milhões de anos, enquanto que a nossa começou cinco milhões de anos atrás. A evolução não tornou a pata do avestruz mais complexa e sofisticada, e sim simples e perfeitamente adaptada a sua função. Nós ainda temos um longo caminho. 
Vai lá saber se chegaremos lá.