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sábado, 25 de abril de 2015

Nosso medo de transgênicos.

Um ano atrás nesta coluna comentávamos a liberação por parte da Comissão Técnica Nacional de Biotecnologia (CTNBio) do mosquito Aedes aegypti transgênico. Resumidamente, a ideia era liberar uma grande quantidade de mosquitos machos geneticamente modificados (GM). Esta modificação no DNA do Aedes faz com que ele morra em poucos dias assim como todos seus descendentes, que sequer conseguem chegar à fase adulta. Como a quantidade de mosquitos GM liberada acaba sendo bem maior que a quantidade de mosquitos machos selvagens, eles, os GM, copulam com a maioria das fêmeas. Estas então geram larvas que morrem antes de virarem mosquitos adultos, diminuindo assim o vetor responsável pela dengue. E lembrando, claro, que podem liberar machos à vontade porque estes não picam.

De lá para cá, fora um aumento assustador do número de vítimas -inclusive fatais- desta doença, pouco ouvimos falar deste Aedes GM. Mas isso mudou em março deste ano. Considerando que nenhuma medida conseguia deter esta epidemia, a prefeitura de Piracicaba decidiu comprar a ideia da liberação de Aedes GM. Isto, como já era de se esperar, gerou uma enorme resistência por parte de grupos que costumeiramente se opõem à utilização de soluções transgênicas (aparentemente em qualquer área). Mas estes, desta vez, seguiram o caminho correto. Em março entraram com uma ação no Ministério Público de Piracicaba (caminho correto porque pelo menos não partiram para a destruição de instalações científicas, como já tinha ocorrido em outros casos). De acordo com os demandantes (que incluía o Conselho Municipal de Defesa do Meio Ambiente), seriam necessárias garantias que os "Aedes transgênicos" não representariam riscos à saúde pública e à natureza. Acatando a solicitação, o MP suspendeu provisoriamente a liberação dos Aedes GM enquanto analisava toda documentação, incluindo os dados científicos disponíveis, opinião de especialistas, etc. 


Finalmente, no dia 15 de abril o MP autorizou a liberação do mosquito GM. Assim, não é só a CTNBio quem opina favoravelmente em relação ao Aedes GM (batizado Aedes “do bem”, para desespero de alguns ambientalistas), mas agora também o MP (espero que não seja alegado que também o MP está a servir os interesses das “grandes corporações internacionais”).

Temos um medo pouco justificado de organismos geneticamente modificados, mesmo quando em nossa história tenhamos intencionalmente modificado o genoma de bichos e plantas mediante técnicas bem menos precisas, como cruzamentos entre espécies e indivíduos artificialmente selecionados, e em alguns casos tendo utilizado indivíduos mutantes após serem submetidos a radiação, etc. Estas técnicas “naturais” geravam eventualmente organismos com algumas das caraterísticas que nos interessavam mas, como ainda não entendíamos direito como funcionava o DNA, com outras –escondidas no genoma modificado- que poderiam ser prejudiciais. Já a engenharia genética permite fazer isso com precisão, reconhecendo e isolando o fragmento de DNA responsável pela caraterística que desejamos e tendo a capacidade de analisar exaustivamente o organismo resultante.

Um exemplo bastante conhecido é o da insulina produzida por organismos geneticamente modificados. Até algumas décadas atrás a insulina “natural” disponível para os diabéticos era extraída de porcos ou bois. Só que esta insulina, além de cara e escassa, não era idêntica à humana. A de boi diferia em três aminoácidos (os tijolinhos com os quais as proteínas são construídas) e a do porco em um. Por causa disto, com o uso constante os pacientes desenvolviam anticorpos e acabavam rejeitando a insulina de origem animal. 

Felizmente na década de 1970 pesquisadores nos Estados Unidos e Reino Unido tiveram a ideia de remover a sequência de genes que nas células do pâncreas humano tinham a “receita” para produzir insulina, e “colaram” essa sequência de genes no DNA de bactérias da espécie Escherichia coli. Em pouco tempo, os pesquisadores tiveram milhões de bactérias que, além de viverem suas pacatas vidas bacterianas, passaram a produzir insulina idêntica à humana, e é ela hoje a que abastece quase todos os diabéticos do planeta. 

Na área de saúde o uso de produtos transgênicos não se restringe à insulina. Drogas transgênicas como a Bevacizumab representam uma das últimas esperanças de vida em alguns tipos de câncer mais agressivos. Outras drogas transgênicas como a Pegfilgrastim e Epoetin alfa são utilizadas para combater os efeitos colaterais da quimioterapia. A Infliximabe, também originada de engenharia genética, é utilizada para combater doenças autoimunes. Como se isso fosse pouco, é bom saber que todas as brasileirinhas e brasileirinhos nascidos nos últimos tempos recebem uma vacina transgênica contra a hepatite B (produzida no Instituto Butantã). É isso, a criançada já sai da maternidade com transgênicos circulando pelo corpo.

Parte do medo, claro, vem da desinformação. Nesse sentido, termino com uma história exemplar. Em 1977 o prefeito da cidade norte-americana de Cambridge enviou esta carta ao presidente da Academia de Ciências daquele país:


"Na edição de hoje do Boston Herald American (...) há duas reportagens que muito me preocuparam. Em Dover, Massachusetts, 'uma estranha criatura de olhos alaranjados' foi avistada. Em Hollis, New Hampshire, um homem e seus dois filhos se depararam com 'uma criatura peluda de 2,75 m de altura'. Peço respeitosamente que sua prestigiosa instituição investigue esses relatos. Espero ainda que possam averiguar se essas 'criaturas estranhas' (caso realmente existam) estão de algum modo ligadas aos experimentos com DNA recombinante em andamento na região da Nova Inglaterra".




Passaram-se algumas décadas, produtos transgênicos são utilizados por milhões sem nenhuma morte registrada, mas no imaginário popular as “criaturas estranhas” ainda podem aparecer a qualquer momento para aterrorizar nossa vida.

Fonte:
Organismos transgênicos no Brasil: regular ou desregular? Colli, W. Rev. USP no.89 São Paulo marzo./mayo 2011