Páginas

sábado, 19 de julho de 2014

Choro e raça. A neurobiologia por trás da derrota.

"Não entendo por que um jogador de futebol chora, brasileiros sempre choram. Toca o hino, choram; eliminam o Chile, choram; perdem para a Alemanha, choram. Eles têm que mostrar que são homens e são fortes. Nunca vi nada tão nefasto como a linguagem corporal dessa equipe.".

Não, o chatíssimo comentário acima não é de um argentino provocador ou de algum uruguaio mordedor. É de um alemão, Lothar Matthäus, um desses alemães que agora reverenciamos num misto de admiração e umas pitadas de síndrome de Copenhague.

Muito do que eu teria que dizer aqui já foi mencionado por outros, fundamentalmente depois das cenas presenciadas após o jogo contra o Chile, imagens de descontrole emocional que se alguém pensou que tinha sido superado no jogo contra Colômbia reapareceu infelizmente no início do jogo contra Alemanha, e que levou –algo “Nunca antes na História deste País” - a que tomássemos sei lá quantos gols em quinze minutos.

O futebol como qualquer esporte de competição objetiva vencer, obedecendo claro regras bem determinadas. E vencer pressupõe também derrotar o adversário. Assim, é necessário potencializar todas as capacidades que levem à superação individual, tanto físicas quanto psicológicas, mas também neutralizar as capacidades do rival (ou como dizem, evitar que o rival “goste do jogo”).

Voltemos então ao choro. Por que ele atrapalha numa competição? Para entender todo este processo precisaríamos detalhar como nosso cérebro processa as emoções, como este processamento interfere na resposta física, como nosso cérebro diferencia desafio de ameaça. É muita coisa para abordar aqui, mas posso afirmar que já avançamos muito na compreensão desses fenômenos e este conhecimento deveria fazer parte da preparação dos atletas.

Sabemos que situações que levam à tristeza, medo, felicidade, etc., são processadas pelo cérebro e este coordena respostas físicas na forma de contração muscular e secreção glandular. A resposta de contração muscular determina nossa postura corporal e nossas expressões faciais. Assim, nosso corpo e nossa face mostram felicidade quando estamos felizes, tristeza quando estamos tristes, medo quando algo nos ameaça, raiva, etc., reações que podem ser “lidas” pelos outros. É uma forma de linguagem não verbal que permite que comuniquemos nossos estados de ânimo, algo que compartilhamos com quase todos os animais.

Ao mesmo tempo, também descobrimos que além desse caminho cérebro-corpo existe o caminho contrário, desde nosso corpo em direção ao cérebro. Este está constantemente recebendo informações somáticas e reagindo de acordo com elas. Em um experimento hoje já clássico, foi solicitado que voluntários avaliassem quão engraçado era um desenho animado. À metade dos voluntários foi solicitado que previamente segurassem um lápis entre os dentes, o que resultava numa expressão facial semelhante à que fazemos quando sorrimos (ver figura abaixo). Como resultado, aqueles que tinham mordido o lápis acabaram encontrando o desenho animado mais engraçado que o grupo controle. Muitos experimentos depois, hoje sabemos que se adotamos uma postura corporal e facial de tristeza, raiva, felicidade, medo, etc., ela acaba influenciando nossas emoções mesmo que não exista nenhum fato real que as cause (os atores que o digam).




De acordo com a hipótese do feedback facial, a contração muscular
 resultante de "forçar" o sorriso como no exemplo acima,
 ativa redes neurais que geram uma melhora no humor e uma percepção
mas positiva do entorno (Strack, F. e cols, 1988).

Voltando ao jogo, como o cérebro dos jogadores estava lendo sua expressão corporal e facial desde o momento do hino? Eles tinham um aspecto de desafio ou ameaça? A diferença é fundamental. A ameaça decorre quando as demandas são percebidas como superando nossas reais capacidades. Já o desafio resulta quando achamos que nossas capacidades são suficientes para superar as demandas.

Acho que aqui não há muita dúvida. Se do lado de fora tínhamos a impressão que nossos jogadores estavam inseguros (reagindo mais a uma ameaça que a um desafio), “pelo lado de dentro” o cérebro de cada um deles estava interpretando da mesma forma. A consequência disto? Entre outras, fisiológica. Alguns estudos indicam que a
 ameaça aumenta os batimentos cardíacos sem diminuir a resistência vascular, o que leva a um aumento da pressão arterial e uma mobilização pouco eficiente de energia para responder às demandas (no desafio também ocorre aumento dos batimentos mas há uma menor resistência vascular, o que leva a uma utilização energética mais eficiente). Como se fosse pouco, o cérebro dos adversários também estava lendo a atitude dos nossos jogadores, o que os tornava assim cada vez menos ameaçadores. Se atravessando esta situação é possível ainda vencer rivais menos capacitados técnica ou taticamente, ao enfrentar rivais tão bons ou melhores estaremos dando um handicap muito importante.

Em tempo, não concordo com a frase lá de cima do Lothar Matthäus. Nem sempre os jogadores brasileiros choram. Em 1994 decidimos uma final nos pênaltis. Não lembro do Dunga, Branco, Romário & cia. chorarem. Se isto está acontecendo com a geração atual, temos que nos perguntar por quê.

-Social "facilitation" as challenge and threat. Blascovich J. e cols., J. Pers. Soc. Psychol. 1999


Inhibiting and facilitating conditions of the human smile: a nonobtrusive test of the facial feedback hypothesis. Strack F e cols., J Pers Soc Psychol. 1988 May;54(5):768-77.

-Self-attribution of emotion: the effects of expressive behavior on the quality of emotional experience. Laird, J. J. Pers. Soc. Psychol. 1974

domingo, 6 de julho de 2014

Os sem-fé

Anos atrás, quando ainda a fé fazia minha cabeça, a palavra de autoridades religiosas era para mim definitiva. Com esforço tentava que a dúvida em relação ao que lia ou ouvia vindo delas não se instalasse porque tinha aprendido que o simples fato de questionar seria duvidar não apenas da fé, mas da palavra do próprio Deus, expressa pela boca dos seus representantes na Terra. Assim, reconheço que em parte minha fé era mantida pelo medo.

Os anos passaram e quem sabe devido a aspectos de funcionamento cerebral, a necessidade de questionar tudo –mesmo os mais arraigados dogmas- prevaleceu. Com isso a fé, entendida aqui como a crença mesmo na falta ou contra toda evidência, se foi.

Se bem a opção religiosa individual não deveria ser um assunto sobre o qual alguém tenha que se intrometer, a história e evolução das religiões como fenômeno social é um tópico que sempre desperta um enorme interesse, motivo pelo qual nesta coluna já tínhamos abordado alguns aspectos, tanto sociológicos como neurobiológicos da experiência religiosa. 

Por tudo o que já tinha lido, prevalecia a informação que a importância das religiões estaria em franco declínio nos países mais desenvolvidos da Europa (entre outros). Assim causou um real interesse a informação lida dias atrás nesta Folha, segundo a qual o número de candidatos a batismo teria crescido nos últimos anos (A redescoberta da fé, Charles Borg, 22/06/2014). E mais, esse fenômeno teria acontecido em países como a França, justamente um dos países europeus mais desenvolvidos. A religião estaria aumentando seu espaço nas Sociedades do Conhecimento? Como ficariam então os prognósticos de alguns pesquisadores que indicam que até a década de 2040 a religião terá uma relevância minoritária nesses países? Poderia um ateu ou um agnóstico, pelo fato de não encontrar respostas para tudo, abraçar explicações sobrenaturais? Seu cérebro inquiridor o permitiria? 

Mas antes de discutir essas possibilidades seria muito importante confirmar esses números. Uma das mais utilizadas referências ao discutir o tema é a ampla pesquisa de opinião pública realizada pela WIN-GALLUP International, o Índice Global de Religiosidade e Ateísmo (GLOBAL INDEX OF RELIGIOSITY AND ATHEISM – 2012). A pesquisa foi feita em 2005 e repetida em 2012, fazendo a mais de 50.000 homens e mulheres de 57 países a mesma pergunta: “Independentemente do fato de você participar ou não de um local de culto, você se considera uma pessoa religiosa, uma pessoa não religiosa, ou um ateu convicto? ”. Por ter sido realizada com um intervalo de sete anos é possível não apenas conhecer os números totais, mas também as tendências. Em relação à França os dados da GALLUP indicam que entre os países europeus é o segundo menos religioso (superado apenas pela República Checa). Em 2005 a porcentagem de franceses que se consideravam religiosos era de 58% despencando para 37% em 2012 (queda de 21%). Já o número de ateus convictos passou de 14% dos franceses em 2005 para 29% em 2012, um aumento de 15%. Assim, os números da GALLUP parecem ir de encontro à ideia de um ressurgimento da fé religiosa entre os franceses. Pelos dados desta abrangente pesquisa, presumivelmente o aumento no número de adultos candidatos a batismo descritos pelo episcopado francês deva ser um fato isolado, que deve ser analisado no contexto de informações mais abrangentes.

Independente dos números, autoridades religiosas deveriam ser mais prudentes na hora de qualificar eventuais benefícios da fé. Entendo a necessidade que elas sentem de defendê-la veementemente, mesmo por que é através da fé que o pensamento religioso com seus dogmas e improbabilidades pode subsistir. Mas outra coisa é tentar estimular a fé em detrimento daqueles que não a possuem. Expressões como “Sem a fé a vida é fútil, uma viagem sem destino e as conquistas um cruel cinismo” soam como uma forma de menosprezar aqueles que, como eu, substituíram a fé por um saudável ceticismo. Não consigo imaginar como esse tipo de comentário pode ser agregador e estimular a tolerância e o respeito. Será que é fútil então a minha vida? Será fútil também a vida de gente como Bertrand Russel, Jean-Paul Sartre, José Saramago, Jorge Amado, Marie Curie, Carl Sagan, Mark Twain, Stephen Hawking, Bill Gates, Simone de Beauvoir, Charles Chaplin e tantos outros?

Achar, como na Idade Média, que a resposta aos grandes dilemas da humanidade e da nossa vida reside na fé no sobrenatural é menosprezar a engenhosidade humana e a evolução da nossa inteligência como espécie. 

Finalmente, vale lembrar as palavras do Dalai Lama: “Qualquer resposta, baseada na religião, para o problema de nossa negligência dos valores internos não pode ser universal, e assim será insuficiente. O que nós precisamos na atualidade é uma abordagem para a ética, que não faça referência à religião e que seja igualmente aceitável para aqueles que tenham fé e os que não tenham: a ética secular.”.

Concordo com ele, e suspeito que um certo argentino também.