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sábado, 12 de setembro de 2015

As experiências de quase (quase!!) morte.

As chamadas “Experiências de Quase Morte” (EQM) sempre despertaram uma curiosidade enorme. Não poderia ser diferente. A morte continua a ser para muitos o grande mistério. Por termos um cérebro que temos, fruto do processo evolutivo que nos tornou humanos, somos conscientes prematuramente da nossa finitude. Um peso enorme que devemos suportar lá desde nossa infância, quando começamos a perceber que a morte existe, que é real e que é para sempre. Existem poucas dúvidas que esse peso todo está na base de quase todas as religiões, que nos prometem a vida eterna em troca da obediência terrena.

Nesta coluna já tínhamos abordado o assunto (ver aqui e aqui). Nas EQM geralmente estamos ante um quadro onde a irrigação sanguínea do cérebro diminui. Isto leva a um lento desconectar de algumas redes neurais e a um lento reconectar quando a irrigação é restabelecida. Quase todos os fenômenos descritos nas EQM como lembranças, luzes, sentimentos de paz e harmonia, encontros com entes sobrenaturais e mesmo a estranha sensação de estar flutuando fora do corpo podem ser hoje explicados por esse rearranjo de redes neurais.

Mas há um detalhe que sempre chama a atenção. Alguns (poucos) que passaram por EQM relatam não apenas estarem flutuando, mas afirmam serem capazes de lembrar tudo o que viram desde essa posição, fato que, obviamente, só poderia ocorrer se a consciência se separasse completamente do cérebro e saísse flutuando até parar no teto, à espera de uma decisão volto/não volto.

Mas existiria forma de verificar isso nas condições objetivas que a ciência exige? Algo que fosse além de relatos subjetivos para os quais uma explicação biológica já resolve muito bem? Para um pesquisador, Sam Parnia, especialista em reanimação e ele mesmo defensor da ideia de uma consciência separada do corpo físico, a resposta foi sim.

Para isto em 2008 iniciou o projeto AWARE (AWAreness during REsuscitation, algo assim como consciência durante a ressuscitação). Basicamente, a ideia foi analisar o que acontece com pacientes com parada cardiorrespiratória (PCR), situação onde a irrigação do cérebro é suspensa por alguns minutos com a consequente perda de consciência. O estudo foi realizado em 15 hospitais do Reino Unido, Estados Unidos e Áustria. Dias (ou meses) depois da reanimação, os pacientes foram entrevistados em relação àquilo que lembravam sobre esses momentos.

Para tornar as coisas algo mais objetivas em cada hospital foram escondidas entre 50 e 100 fotografias com diversas imagens nas salas de reanimação, imagens que só poderiam ser vistas de cima para baixo, ou seja apenas se a consciência se separasse mesmo do paciente desfalecido. Assim, a hipótese dualista (mente e cérebro serem coisas separadas) seria corroborada se algum sobrevivente revelasse a imagem escondida.

Os resultados mostraram que dos 2060 pacientes utilizados neste estudo, apenas 330 sobreviveram à PCR. Destes, 140 tiveram saúde suficiente para passar às seguintes fases do estudo baseadas em entrevistas. Só 55 (39%) afirmaram ter algum tipo de lembrança desse período (61% dos entrevistados não lembravam de nada). Desses 55 a maioria afirma ter tido lembranças da família, animais, plantas e a famosa luz brilhante. 5% lembraram cenas do passado, 22% afirmaram terem sentido paz e plenitude e 9% sentimentos de alegria. 8% alegam ter encontrado um ser místico e 13% a sensação de separação do corpo. Até aqui, nada que não possa ser explicado por um cérebro confuso se reconfigurando após o trauma.

De acordo com o estudo, apenas 1 paciente revelou informações que –segundo o autor- puderam ser verificadas, informações sobre o que estava ocorrendo durante a reanimação. Por causa desse único paciente veio todo um alarde midiático com manchetes do tipo


-"Vida após a morte? Maior estudo realizado fornece evidências de que as experiências "fora do corpo" e "quase-morte" podem ser reais."

-“Descoberta científica sugere que há vida após a morte.

-“Investigação científica conclui que é possível vida após a morte.”

-“Cientistas britânicos confirmam que vida após a morte é real.


Confesso que após ler essas manchetes imaginei que algum dos pacientes tivesse descrito sem erro a imagem escondida, única evidência que justificaria tamanho alvoroço jornalístico. Mas nada, nenhuma informação sobre isso. Quando finalmente consegui ler o artigo original aconteceu o que já suspeitava, esse único paciente que segundo o autor fornecia informações objetivas que corroborariam uma consciência separada do corpo físico simplesmente não identificou nenhuma imagem escondida. No artigo o autor apenas comenta este fato, alegando que o fracasso pode ter ocorrido porque a maioria das reanimações ocorreram em salas que não tinham essas imagens escondidas.

Como foi ele – o autor- quem criou a metodologia, isso não serve de desculpa para mascarar os resultados. Seu estudo simplesmente não corroborou –como ele desejaria- a ideia de uma consciência separada do corpo físico e assim a hipótese alternativa de uma consciência fruto apenas do funcionamento cerebral acaba sendo reforçada. Essa deveria ser a conclusão do seu estudo e das manchetes dos jornais.

Por outra parte tentar provar cientificamente a existência de uma consciência, alma ou espírito separada do corpo físico não é ciência. Por quê? Simples, não há experimento que nos permita negar a hipótese. A consciência desencarnada –caso existisse- poderia não se comunicar por motivos que vão além da experimentação. É como provar a inexistência de deuses, de gnomos ou da fada do dente. Enfim, é apenas uma questão de fé.





Fontes:

-AWARE—AWAreness during REsuscitation—A prospective study. Sam Parnia e cols., Resuscitation 85 (2014) 1799–1805

-No, this study is not evidence for "life after death". Sharon Hill, http://web.randi.org/swift/no-this-study-is-not-evidence-for-life-after-death