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sábado, 20 de dezembro de 2014

Jura dizer a verdade?

Quem já não assistiu? Sentado lá no alto o grave juiz e sua toga; ao lado o júri ouvindo longas explanações de advogados de defesa e acusação, o desfile de testemunhas e o conhecido “Jura dizer a verdade, toda a verdade e nada mais que a verdade?”.

Em nosso imaginário coletivo tão hollywoodiano esta é a melhor forma de fazer justiça. Pelo menos nos Estados Unidos. Lá o peso de uma “testemunha ocular” é decisivo. Foi apenas a partir da década de 1990 que testes científicos mais objetivos como a análise de DNA começaram a ser utilizados para confirmar depoimentos, álibis e culpabilidades. Nos Estados Unidos mais de 239 condenações foram revistas devido ao uso do teste de DNA. Destas 239 condenações incorretas –algumas das quais mantiveram por décadas inocentes na prisão- 174 tinham sido baseadas em depoimentos obtidos de testemunhas oculares. Em alguns casos foi suficiente o testemunho de apenas uma pessoa, mas em outros, três ou quatro testemunhas tinham confirmado a autoria do crime culpando quem nada tinha feito.

Como é possível, aceitando a honestidade das testemunhas, que duas, três ou mais pessoas afirmem ter visto alguém cometer um crime quando de fato o acusado nem estava aí?

A ciência além de oferecer essa ferramenta incrível que é a análise de DNA pode auxiliar juízes e jurados a entender por que uma ou mais testemunhas oculares por mais honestas que sejam ou por maior convicção que demostrem podem estar simplesmente erradas.

O primeiro passo é entender que nossa memória não é algo confiável. Muitos a imaginam como um filme que gravamos sobre determinado evento e depois, quando necessário, clicamos um “play” imaginário e o filme volta a ser exibido reproduzindo tudo com exatidão. Errado. Se quisermos fazer comparações –sempre perigosas por inexatas- o mais correto seria imaginar a memória como um quebra-cabeça que desmontamos, misturamos as peças e guardamos. Mas vamos complicar ainda. O lugar onde guardamos tem peças de outros quebra-cabeças e, para piorar, com o tempo as peças vão sendo perdidas.

No caso dos julgamentos estes podem demorar anos e o processo de acúmulo e perda de peças se acentua. Quando a testemunha é chamada para depor ela tenta “dar um play” no filme do evento mas na realidade está montando um quebra-cabeça ao qual faltam algumas ou muitas peças. Se nosso cérebro fosse fã da realidade nos faria dizer, “Mmm..., não lembro”. Mas nosso cérebro não é fã da realidade e sim da coerência. Que é que ele faz então? Pode utilizar peças de outros quebra-cabeças para formar uma imagem coerente com nossas convicções e depoimentos anteriores, nossos e de outros. Está faltando um rosto na imagem? Sem problema, há muitas peças de “rostos” com as quais substituir a peça ausente. Está faltando uma frase? Idem. Para o cérebro melhor um corpo com o rosto trocado que um corpo sem rosto nenhum.

Com essa instabilidade toda, nossa memória pode ser manipulada. Falsas memórias podem ser implantadas com alguma facilidade. Em um experimento já clássico pesquisadores deram para ler a um grupo de voluntários quatro textos que narravam eventos da sua infância. Três eram reais e um inventado. Parentes colaboraram com os pesquisadores para dar detalhes de lugares e pessoas que os voluntários conheciam (esta técnica de implantação de memórias é denominada na psicologia cognitiva “Lost in the mall technique”, algo como “Perdido na loja”). No estudo, 25% dos voluntários lembraram como real o evento imaginário, e alguns, quando lhes foi dito que um dos eventos era inventado (mas sem informar qual), eliminaram da lista um dos três que era real.

Isto mostra que, infelizmente, profissionais inescrupulosos podem não apenas direcionar a testemunha, mas também implantar memórias sobre o evento. Com o tempo a testemunha não consegue diferenciar a versão falsa da real.

Além desta fonte de incerteza, o grau de estresse na hora de presenciar o fato influencia a capacidade de memorização. A presença de sangue, armas, nossos preconceitos, nossa tendência a corroborar a versão dos outros se é maioritária (um tipo de viés denominado pensamento de grupo ou Groupthink) acabam contribuindo para criar uma versão que pode corresponder muito pouco com a realidade, mas na qual confiamos plenamente.

É isso. A testemunha pode jurar e acreditar que está dizendo a verdade, toda a verdade e nada mais que a verdade, mas seria bom que juízes e jurados levassem em consideração a informação que vem da neurociência. Quem sabe a vida de um inocente é a que está em jogo, e esse inocente pode ser qualquer um de nós.


Fontes:

-The formation of false memories, 1995. Loftus, EF & Pickrell JE . Psychiatric Annals 25: 720–725.
-Do the “Eyes” Have It?, 2009. Arkowitz, H & Lilienfeld, SO. Scientific American Mind , vol. 20, no. 7, pp. 68-69.

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