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sábado, 25 de maio de 2013

O que nos tira o sono

Durante milhões de anos a luz natural regulou o
 ciclo sono/vigília.Como a luz artificial alterou
 nosso ritmo biológico?
Tenho dormido muito pouco. Em parte isso se deve ao meu ciclo sono/vigília. Aparentemente pertenço a um grupo que fica muito ativo durante a noite mas muito mal pela manhã. Assim, me parece bastante natural trabalhar (no computador) até a madrugada esperando o sono chegar. Como veremos, é aí que está o problema.


Mas não estou sozinho nessa situação. Não sei como estão os números no Brasil, mas pesquisa recente realizada no Reino Unido mostra que 5% dos ingleses dormem menos que cinco horas por dia enquanto 30% dos estadunidenses dormem em torno de seis. Muito pouco. O mais saudável seria dormir umas oito horas diárias. 

Durante milhões de anos nosso cérebro e o de nossos ancestrais teve um sistema muito eficiente para regular o ciclo biológico de sono e vigília: a luz do sol (por isso esse ciclo de aproximadamente 24 horas é chamado circadiano). A rotação da Terra, à qual estamos intrinsecamente ligados determinava a hora de dormir (ou de acordar no caso de animais de hábitos noturnos). A luz natural ao atingir o cérebro através de nossos olhos ligava ou desligava um circuito já bem conhecido que inclui estruturas na retina, hipotálamo e uma glândula em particular, a glândula pineal que produz melatonina, o hormônio do sono.

Mas em 1879 Thomas Alva Edison inventou a primeira lâmpada incandescente comercializável e a partir daí tudo mudou. Somos agora capazes de prolongar o dia até a hora que decidirmos desligar a luz. E fazemos isso cada vez mais tarde. Só que, claro, temos que entrar no trabalho às oito horas ou antes. Tomamos então bastante café pela manhã para desobedecer o que nosso corpo está pedindo: dormir mais. Não tem como dar certo mesmo. Nalguma hora íamos pagar o preço.

E já estamos. A falta de sono está definitivamente associada a problemas como obesidade, doenças cardíacas, derrames e depressão. E mais, pessoas que dormem menos que cinco horas por dia tem 15% mais chances de morrer (de qualquer causa) que pessoas que dormem as oito horas recomendadas. Crianças, que também são vítimas dessa epidemia do pouco dormir, ao contrário de ficarem sonolentas ficam hiperativas e com problemas de concentração e isto é muitas vezes confundido com TDAH (Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade). Então prescrevemos Ritalina...

O que eu faço muitas noites, ligar meu computador e trabalhar até o sono chegar é justamente o que não deve ser feito. TVs, computadores, tablets, smartphones e todos os dispositivos tipo LED emitem muita luz na faixa do azul e verde, as melhores cores para ativar as células da retina, diminuir a liberação de melatonina e com isso inibir o sono. Assim quanto mais tempo fico na frente desses aparelhos “esperando o sono chegar”, mais difícil que o sono venha. Especialistas recomendam que os fabricantes substituam os tons azulados da tela por tonalidades mais próximas ao vermelho e laranja, que parece terem menor capacidade de alterar o ciclo circadiano.

Enfim, vou ter que mudar meus hábitos. E vou começar agora. Me desculpem. Tinha muito mais para escrever sobre este assunto. Sobre o saudável sono REM (sono de movimentos oculares rápidos) por exemplo, que tanto dano causa quando o encurtamos. Mas já são 1:45 (sim, da madrugada). Tenho que acordar 7:30. Vou desligar meu ultrabook agora mesmo.

E tentar dormir.




sábado, 11 de maio de 2013

Africanos amaldiçoados

Durante boa parte da Idade Média, a Igreja Católica proibiu os fieis lerem a Bíblia. Registros dessa proibição podem ser encontrados na obra do Papa Gregório IX (1160 - 1241). De certa forma, a proibição vinha ao encontro da necessidade de manter a população afastada do conhecimento, sempre tão perigoso para os poderosos de plantão, religiosos ou não. Esta ideia central foi magistralmente explorada por Umberto Eco no ótimo livro (e filme) “O Nome da Rosa”. 

Para alguns, e devo concordar, parte do temor eclesiástico ante a leitura da Bíblia estaria no fato de o leitor perceber que o Deus amoroso, justo, e misericordioso que nos é contado em verso e prosa em nada se parece àquele do Velho Testamento. 

A história que dá origem a este artigo é uma dessas passagens que valeria a pena que não existissem, de tanta desgraça que causou.

A ideia que os africanos são amaldiçoados por Deus vem de uma passagem do Gênesis, onde Noé se embebeda e deita nu para dormir. Seu filho menor, Cam, descobre e conta para seus irmãos. Quando Noé acorda fica bravo com a atitude do seu filho e, vá lá saber porquê, lança uma maldição ao filho de Cam, Canaã (“Maldito seja Canaã; servo dos servos seja aos seus irmãos.”).

A história seria mais uma entre tantas lendas bíblicas se não fosse porque essa maldição forneceu a base religiosa para justificar o racismo e a escravidão dos africanos, tanto nos Estados Unidos como no Brasil, já que de acordo com algumas interpretações os africanos seriam descendentes de Cam. Assim, e com esse precedente histórico, causa espanto que alguém se atreva sequer a mencionar nos dias de hoje tamanho disparate, bíblico ou não.

É claro que os africanos não são descendentes de Cam, nem de Canaã. Caso Noé ou Cam tenham de fato existido, eles seriam descendentes de africanos, como todos nós. Como já se sabe ha muito tempo, África é o berço da humanidade.

Mas conhecimento não parece ser algo que esteja na pauta do Congresso, muito menos entre os membros da bancada evangélica (democraticamente eleita pelo povo).

Em breve todos esquecerão da existência do pastor/deputado (mesmo ele fazendo tanta força para que isso não aconteça). Tem sido assim. Barbaridades se repetem no noticiário, causam um estremecimento inicial e depois caem no esquecimento. Aos poucos vamos nos acostumando e com isso o atraso impulsionado pelo fundamentalismo religioso se consolida, de forma lenta mais segura.

Se existe algum antídoto para este quadro preocupante, quem sabe a tolerância promovida pela cultura da ciência seja um deles. 

Não faço propaganda enganosa ao defender uma visão racional baseada no conhecimento científico para fugir da nossa intolerância atávica, tão impregnada nos textos religiosos. 
O trecho que reproduzo abaixo, extraído de um livro que trata sobre a natureza humana analisada desde um ponto de vista evolutivo, é um exemplo de como o conhecimento que a ciência fornece pode nos tornar indivíduos melhores. 
Compare o leitor este texto científico com a maldição bíblica. Tire suas conclusões.

“[...] toda a evolução significativa em nossa espécie ocorreu em populações de pele escura vivendo na África. No início da evolução dos hominídeos, cinco milhões anos atrás, nossos ancestrais semelhantes a macacos tinham a pele escura como chimpanzés e gorilas. Quando o moderno Homo sapiens evoluiu há cem mil anos, nós ainda tínhamos pele escura. Quando o tamanho do nosso cérebro triplicou, triplicou em africanos.
Quando a seleção baseada na escolha sexual moldou a natureza humana, ela foi moldada em africanos. Quando a linguagem, a música e a arte evoluíram, elas evoluíram em africanos. Peles claras apareceram em algumas populações de países europeus e asiáticos muito tempo depois de a mente humana ter atingido sua presente capacidade.

A cor da pele dos nossos antepassados ​​não tem muita importância científica. Mas tem importância política dada a persistência do racismo antinegros. Eu acho que um poderoso antídoto contra tal racismo é a percepção de que a mente humana é um produto da ação de mulheres negras africanas que favoreceram a inteligência, bondade, criatividade e linguagem articulada em homens negros africanos, e vice-versa.

Afrocentrismo é a atitude apropriada a tomar quando estamos pensando sobre a evolução humana.”


(The Mating Mind; Geoffrey Miller)