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domingo, 27 de novembro de 2011

O poder dos amuletos quânticos

Imagem da “face de Marte”
 fotografada em 1976 pela sonda Viking 1
.
A esta altura, falar mal das pulseirinhas Power Balance é, usando uma frase não muito simpática, chutar cachorro morto. As “pulseiras do equilíbrio” já foram devidamente desacreditadas em vários países e as empresas responsáveis obrigadas a desmentir publicamente seus supostos efeitos terapêuticos, garantir o reembolso a consumidores que se sentiram lesados pela propaganda enganosa e, até, pagar multas milionárias.

De acordo com o fabricante os efeitos terapêuticos das pulseiras estariam relacionados com o fato delas conterem embutidos “dois hologramas quânticos de Mylar programados com frequências que interagem naturalmente com o campo eletromagnético do corpo humano”.



O episódio serve para refletir sobre uma característica que nos acompanha desde sempre: por que tendemos a acreditar em todo tipo de bizarrice sobrenatural? 


Por um lado, claro, tem o efeito do marketing. Ver personalidades que admiramos usando determinados produtos tem um apelo comercial óbvio. 

Falta de conhecimento? Bom, em parte sim. Conhecimentos básicos de física e biologia (que hoje estão ao alcance de um clique na Internet) nos levariam a suspeitar que isso de “hologramas quânticos” é uma balela, e que a própria mecânica quântica não pode ser usada para justificar efeitos biológicos já que as leis do universo quântico não interferem diretamente em nosso dia a dia.



Por que pagar mais de R$ 100,00 pelas originais?
Estas vendidas na Austrália (e feitas provavelmente na China),
têm tudo o que as outras têm,
e um charmoso aviso: Placebo (e custam apenas US$2,00!!)

 Mas isso de acreditar em bizarrices parece estar ainda mais arraigado.

Acho até que sou um exemplo desse nonsense relacionado com a fé. Mesmo sendo uma pessoa cética (como li em algum lugar, sou cético não porque não quero acreditar, e sim porque quero entender), toda vez que um pensamento negativo ou trágico atravessa minha mente tenho a compulsão de procurar algum objeto de madeira e dar um toc-toc-toc. Claro que sei que isso é uma bobagem, mas quando não consigo cumprir esse ritual sinto uma emoção negativa. E emoção, como quase tudo, é algo que meu cérebro cria. 



De onde vem isso? Nesta coluna já falamos de um fenômeno cognitivo básico, a padronicidade (ou apofenia). É a capacidade do nosso cérebro de encontrar padrões mesmo quando eles não existem. A famosa “face de Marte” é um exemplo bem ilustrativo. Nosso cérebro cria uma face a partir de um par de elevações no solo marciano. A associação que fazemos é quase automática. Muitos veem Jesus ou a mãe dele em torradas, janelas, etc. Somos bons e rápidos fazendo essas associações, mas desfazê-las quando elas se provam incorretas é um processo que exige o uso de outras capacidades cognitivas como o pensamento crítico, que não são automáticas. 

O porquê disto? Bom, já mencionamos uma possível explicação ao falar sobre a fé religiosa.

Imaginemos um homem pré-histórico perambulando pelas savanas africanas. De repente ouve um barulho na vegetação próxima. Será o vento ou um perigoso predador à espreita? Se for o vento mas ele associa o barulho ao predador imaginário (para os psicólogos cognitivistas, erro tipo um), fugirá correndo. Cometerá um erro, mas este não será fatal. Mas se não fizer a associação e for de fato um predador (erro tipo dois), poderá servir de refeição e assim seus genes não serão passados para as futuras gerações. Desta forma a própria seleção natural poderia fazer que pessoas propensas ao erro do tipo um fossem selecionadas em detrimento das outras. Com o tempo, para as seguintes gerações o comportamento de associar coisas naturais a causas imaginárias e potencialmente ameaçadoras (sobrenaturais ou não) pode ter se tornado comum.

Sim, nosso cérebro vem preparado de fábrica para acreditar. Não a toa mais de 80% da população mundial acredita nas mais diversas divindades (e pulseiras mágicas, amuletos, florais, bruxinhas boas e más...). Se nos primeiros anos da nossa formação os adultos que temos como referência reforçam essa característica, o que a educação religiosa faz de forma muito eficiente, resulta cada vez mais difícil desfazer associações incorretas.

A face de Marte ou a virgem na janela permitem descrever outro fenômeno cognitivo, a agenticidade: a tendência de acreditar que o mundo é controlado por forças invisíveis e intencionais. Não apenas vemos uma face em Marte, tendemos a acreditar que foi construída por uma civilização desconhecida com o objetivo de nos passar uma mensagem. Alguns “elegidos” entendem essa mensagem e se transformam em gurus ou sacerdotes da verdade revelada (hummm..., onde já vi isso?).

Finalmente, embora ainda sinta a compulsão de bater na madeira, há uma distância enorme entre essa pressão cerebral e acreditar que isso realmente funcione. Associar vem primeiro, e talvez não possamos evitar, mas racionalizar tem que vir depois.

Nosso cérebro já permite fazer as duas coisas. 





Imagens da “face de Marte”. A fotografia de 1976 foi tirada pela sonda Viking 1.
 A de 1988 pela sonda Mars Global Surveyor (MGS) com imagens da alta definição.
 A imagem de 2001 é uma reconstrução tridimensional realizada pela MGS utilizando técnicas ainda mais sofisticadas. As imagens pertencem ao site da NASA, e são de domínio público (http://www.nasa.gov/multimedia/imagegallery/image_feature_60.html).




Fonte: 

Why People Believe Invisible Agents Control the World? Michael Shermer , Scientific American, May 19, 2009.
Patternicity: Finding Meaningful Patterns in Meaningless Noise. Michael Shermer , Scientific American, November 25, 2008 | 74

domingo, 20 de novembro de 2011

Amputados não esperam por milagres

Um dos desafios da ciência para as próximas décadas será regenerar membros e órgãos amputados ou lesados. Não apenas mãos, braços e pernas, mas rins, coração, etc. 
Curiosamente o tema, além do aspecto científico é um prato cheio para atiçar o debate religioso.
Para quem quiser ler e refletir sobre este assunto recomendo o site www.whydoesgodhateamputees.com (literalmente, porquedeusodeiaamputados.com). 
Para o autor, se Deus intervém operando milagres para remover tumores malignos, fazer cego enxergar, o mar se abrir, morto ressuscitar e tantos outros, não haveria motivos lógicos -nem biológicos- para Ele não promover a regeneração de membros perdidos. 
Mas, como todos sabemos, não importa quantas pessoas peçam, nem quanto elas rezem, nem quão sinceros e devotos eles sejam; não importa que o amputado seja absolutamente merecedor da graça, o milagre não acontecerá.
E também não importam as palavras da bíblia “E tudo o que pedirdes na oração, crendo, o recebereis.”, “Se pedirdes alguma coisa em meu nome, eu o farei.”.

Ainda de acordo com o autor, três possibilidades justificariam este fato incontestável,

a) Deus não existe;

b) Deus existe, mas regenerar uma simples falange de um único dedo está fora do Seu alcance;

c) Deus existe, tem esse poder, mas simplesmente se nega a atender pedidos de amputados e seus familiares.

Também não me ocorre outra possibilidade. Se o leitor pensar em alguma, fique à vontade para aumentar a lista.

Polêmicas à parte, o que a ciência tenta entender é por que os mamíferos adultos perdemos a capacidade de regenerar órgãos e membros. Ela ainda existe em animais mais simples. Estrelas-do-mar regeneram braços, alguns tipos de salamandras, como os axolotes, podem regenerar órgãos e membros amputados. 


Estrela-do-mar regenerando tentáculos perdidos


O axolote (Ambystoma mexicanum) é capaz de
regenerar 
membros e órgãos danificados.


A planária, um verme parecido com a lesma, tem a incrível capacidade de, se dividida em dois, desenvolver duas novas metades absolutamente funcionais criando assim dois indivíduos. 

Planárias, vermes platelmintos da classe dos turbelários,
apresentam uma enorme capacidade de regeneração.
Seccionadas longitudinalmente, são capazes de regenerar
a outra metade, criando dois novos indivíduos


Mesmo os humanos, em períodos fetais, temos ainda alguma capacidade de regenerar membros. Mas em algum momento da evolução dos mamíferos, cicatrizar uma ferida aberta (evitando assim infecções fatais) passou a ser mais importante que regenerar um membro amputado. Os cientistas observaram que quando perdemos um dedo, por exemplo, os eventos que levam a cicatrizar rapidamente, inibem os processos que poderiam permitir a regeneração.

Esta corrida da ciência tem, como já ocorreu no passado, a pressão da guerra e seus milhares de amputados e conta também com o inesperado. Alguns avanços surgiram quase por acaso. É o que aconteceu com um grupo de pesquisadores que estudava o tratamento para o lúpus, uma doença autoimune que acomete milhões de seres humanos.

Para os estudos, criaram um camundongo geneticamente modificado, denominado MRL, capaz de desenvolver a doença. Com isso esperavam compreender seus mecanismos genéticos e tentar novos tratamentos. Para identificar os animais, eram feitos furos nas orelhas. Furo na orelha esquerda, animal MRL; sem furo, camundongo normal.

Dias depois, quando foram realizar experimentos, observaram que todos os animais estavam sem furo. Acreditando tratar-se de um equívoco por parte de algum membro da equipe, repetiram tudo, e para surpresa geral, em poucos dias os camundongos MRL tinham regenerado a orelha, sem marcas nem cicatrizes. 

Regeneração das orelhas em camundongos MRL.
Comparar com os camundongos normais na coluna à esquerda
 (Ellen Heber-Katz e cols.).


Os pesquisadores perceberam então que ao alterar o DNA do animal tinham mexido na sequencia de genes relacionada com os processos regenerativos. De alguma forma, tinham desbloqueado essa capacidade perdida em mamíferos.

O camundongo MRL não apenas regenerava a orelha, mas partes completas do coração quando artificialmente danificado, e até falanges inteiras de dedos amputados. Atualmente os cientistas tentam identificar qual a sequencia de genes envolvidos no processo, por que eles estão bloqueados, e que acontece na área da amputação quando eles são ativados novamente.

Além do camundongo MRL, outro grupo de mamíferos que parece guardar o segredo da regeneração é o dos cervos. Anualmente repetem um ciclo de formação, amadurecimento, e queda dos seus espetaculares chifres. Como essa formação tem semelhanças com a formação dos nossos ossos, os cientistas querem saber quais as substâncias químicas que promovem esse crescimento e por que o processo pode se repetir com tamanha velocidade a cada ano.

A formação anual de novos chifres em cervídeos pode
dar pistas sobre os processos de regeneração de ossos humanos.

 Tanto no caso dos camundongos MRL como nos cervos, a ação de células tronco parece jogar um papel fundamental. Os cientistas acreditam que se as pesquisas continuarem no 
ritmo atual, em dez anos partes de dedos e órgãos internos poderão ser substituídos em humanos, e daqui a 50 anos formar um novo pulmão, rim, ou braço poderá fazer parte da rotina médica.

Não deixa de ser irônico verificar que a manipulação genética, a mesma que criou os camundongos MRL, tenha sido colocada pelo Papa Ratzinger entre os novos pecados capitais. Vai lá saber o site citado no início deste artigo está certo, e Deus tem realmente algo contra os amputados.

Fontes: 
The scarless heart and the MRL mouse. Ellen Heber-Katz e cols., Phil. Trans. R. Soc. Lond. B (2004) 359, 785–793. 
Deer antlers: a zoological curiosity or the key to understanding organ regeneration in mammals? J.S. Price e cols., J. Anat., (2005) 207:603-18

sábado, 12 de novembro de 2011

O tumor do Lula e o nosso

Normalmente, quando alguém atravessa uma situação dramática nossa reação é compartilhar sua dor e tristeza. Da mesma forma, quando um semelhante passa por uma situação constrangedora -ou mesmo feliz-, vivenciamos também algo da sua vergonha ou da sua alegria. 
Este tipo de reação solidária não surge apenas devido ao efeito de valores morais adquiridos durante nossa educação, mas trata-se de uma resposta natural decorrente da ativação de redes neuronais específicas. Já comentamos aqui sobre este sentimento que compartilhamos com outros primatas, a empatia.

Resumidamente, quando vemos alguém triste os mesmos neurônios responsáveis por esta observação podem estimular os circuitos associados com a tristeza, e sem que nada “triste” tenha nos acontecido passamos a sentir parte desse pesar. O importante é que este sentimento, que facilita nossa convivência em grupo, permite que nos coloquemos no lugar do outro evitando assim uma série de conflitos.

Quando disparou na imprensa que o ex-presidente Lula estava com câncer, o que menos se viu, pelo menos entre os que expressaram sua opinião em redes sociais, comentários em portais de notícias, etc., foi a empatia à qual me referi anteriormente. Em vez de uma mensagem solidária, muitos optaram por mandar Lula para aquele lugar, o SUS. Por algum motivo, o sentimento de empatia foi bloqueado. Por quê?

A alegação de muitos é que agiram assim para chamar a atenção sobre o “estado deplorável” em que se encontra nosso sistema público de saúde. É uma possibilidade que não pode ser descartada. Como chefe do governo, podemos racionalizar atribuindo-lhe responsabilidades que, de alguma forma, bloqueiem nossa resposta natural empática.

Mas há um problema com esta justificativa. Meses atrás a população praticamente elevou à qualidade de herói nacional o número dois na cadeia hierárquica do governo Lula, o vice-presidente José Alencar, pelo simples fato deste ter enfrentado com o que há de mais caro e sofisticado da medicina nacional e internacional suas várias recidivas de câncer. Obviamente ele também era governo. Corresponsável por todas as suas políticas. Mas nenhuma campanha foi sugerida para que o vice-presidente fosse tratado pelo SUS.

Meses depois, a então candidata Dilma Rousseff passou por situação semelhante e tampouco foi observado esse fervor pátrio para que ela enfrentasse as filas do nosso sistema público de saúde.

O sentimento empático também poderia ser bloqueado caso o destinatário fosse um crápula, um genocida, um sociopata, enfim, um elemento reconhecidamente nocivo ao grupo. Não parece ser este o caso do ex-presidente Lula. Podemos atribuir-lhe uma série de defeitos e virtudes, mas nada que se pareça com essa descrição.

Mas há um fato que merece nossa atenção. A empatia é um sentimento profundamente fixado em nosso cérebro mediante mecanismos de seleção natural. O altruísmo e outros valores morais que nos são tão caros também podem ser explicados pela necessidade de criar vínculos que tornem o grupo mais forte e coeso, fator essencial para sua sobrevivência.

Como já mencionamos em outras oportunidades, o Homo sapiens evoluiu a partir de pequenos grupos de caçadores/coletores. A sobrevivência individual dependia de um comportamento solidário e altruísta entre os membros do grupo, mas hostil com os membros de outros grupos. Será que a disparidade de tratamento que dispensamos a essas três figuras da vida pública está relacionada com estas mazelas evolutivas? Por ser rico, branco e católico praticante José Alencar merecia tudo que seu dinheiro pudesse pagar para combater sua doença? José Alencar e Dilma são de nosso grupo e Lula não?

Não sei até que ponto a falta de empatia demonstrada por muitos em relação a nosso ex-presidente esteja relacionada com este fato. Mas suspeito que pelas suas características autobiográficas ele desperte uma rejeição atávica em muita gente. Este sentimento pode ter atingido o ápice quando, através do instrumento democrático do voto, este sapo de outro poço foi galgado ao posto de líder máximo de nosso bando. Conviver olha lá, aceitar sua liderança já é outra história, não é mesmo?

É evidente que sempre devem ser cobradas responsabilidades aos dirigentes, mas fazer isso justo num momento como esse, convenhamos, deve no mínimo nos fazer refletir sobre nossos reais motivos. Que tenhamos um passado evolutivo impiedoso não justifica, neste início de século 21, tamanha falta de sensibilidade.