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sábado, 28 de abril de 2012

Por que as drogas viciam?

Representação artística de uma sinapse.
Dias atrás descrevemos como quatro substâncias químicas produzidas no cérebro são capazes de agir diretamente em nosso humor e percepção da felicidade. De passagem, mencionamos que quase todas as drogas utilizam mecanismos semelhantes para produzir seus efeitos. Alguns leitores ficaram especialmente interessados nesse trecho, e como realmente o problema das drogas é e continuará sendo um grande problema, vale a pena mostrar o que a ciência sabe sobre sua ação.

Todos os mamíferos possuímos em nosso cérebro um conjunto de estruturas que se conectam formando os denominados circuitos de recompensa. É esse sistema o responsável por nos dar a sensação de prazer quando alcançamos um objetivo básico de sobrevivência, como procriar, comer, saciar a sede e cuidar da nossa prole. Nos humanos esses objetivos primários estão por trás de outros comportamentos mais “sofisticados”, como ganhar dinheiro, consumir, sair para a balada, buscar aconchego... Nosso cérebro complexo fantasia os objetivos primários com disfarces socialmente mais palatáveis, mas tudo ativa o mesmo sistema básico. O fato é que o objetivo de obter prazer -e fugir da dor- é o grande motivador de nosso comportamento.






A descoberta do sistema de recompensa remonta aos estudos de James Olds e Peter Milner,
na década de 1950. Estes autores observaram que estimulando mediante eletrodos
 determinas áreas cerebrais de ratos, estes obtinham um efeito prazeroso.
Quando era permitido que os animais se auto-estimulassem mediante
o acionamento voluntário de uma alavanca colocada dentro da jaula (ver na foto),
os ratos repetidamente acionavam o dispositivo mais de 2000 vezes por hora.
Nos anos posteriores foram definidos com precisão os circuitos e foi o verificado
o papel da dopamina nesse sistema.


Esse sistema de recompensa é formado por regiões encefálicas conhecidas como área tegmental ventral, núcleo accumbens, e as regiões cingular e ventromedial do córtex pré-frontal (entre outras). Neurônios dessas estruturas se comunicam entre si mediante a produção e liberação de um neurotransmissor, a dopamina (DA). A quantidade de DA liberada, assim com o tempo que ela permanece comunicando os neurônios é cuidadosamente controlada de forma a não se sentir prazer de mais ou de menos. Se sentirmos prazer constantemente -ou não sentirmos prazer nenhum- não teremos motivação para empreender as ações necessárias para nossa sobrevivência. 


Estruturas e circuitos cerebrais que compõem o "sistema de recompensa".


Podemos ter uma ideia desse equilíbrio ao analisar uma ação corriqueira. Apenas a título de exemplo, lembremos nosso comportamento, ações e desejos ao ver na vitrine um objeto há muito desejado. Possuir esse objeto se transforma no agente motivador do comportamento. Podemos ser capazes de prever o prazer que sentiremos ao possuí-lo. E de fato, na hora da compra, quando o objetivo é alcançado, a DA é liberada no sistema de recompensa gerando o prazer correspondente. Como já vivenciamos, o nível de prazer vai decaindo com o tempo, tempo este coincidente com a reabsorção do excesso de DA.







A figura esquematiza a comunicação sináptica entre dois neurônios. Acima, o neurônio 
pré-sináptico produz e armazena em vesículas (1) neurotransmissores (2), neste caso dopamina (DA). Mediante o estímulo apropriado a DA é liberada no espaço sináptico e se liga aos 
receptores (3) no neurônio pós-sináptico, desencadeando diversas repostas metabólicas. 
Após exercer sua ação, parte da DA volta para o neurônio pré-sináptico
 mediante o sistema de recaptação (4).



O delicado equilíbrio deste sistema é destruído ao consumir drogas. Quase todas elas agem no sistema de recompensa aumentando a quantidade e o tempo que a DA permanece entre os neurônios. A cocaína, por exemplo, bloqueia o sistema de recaptação da DA (ver aqui detalhes desse sistema de recaptação) de forma que esta se acumula em quantidades muito grandes entre os neurônios potencializando a sensação de prazer. Outras drogas, como a heroína, atuam de forma algo diferente, mas o resultado final é sempre um aumento na disponibilidade de DA.





Na presença de cocaína, esta bloqueia o sistema de recaptação (1) o que leva
a um aumento na quantidade de DA no espaço sináptico potencializando
os efeitos metabólicos no neurônio pós-sináptico.

Como a quantidade de DA circulante no sistema é bem maior pela ação da droga, as recompensas naturais associadas à procriação, alimentação, etc., acabam dando um prazer comparativamente menor. Ao mesmo tempo, para compensar o excesso de DA o cérebro responde diminuindo o número de receptores para esse neurotransmissor no sistema de recompensa, o que leva a que seja necessária uma quantidade cada vez maior da droga para obter o mesmo nível de prazer, fenômeno conhecido como tolerância.


Com o passar do tempo, a motivação do viciado se resume às ações necessárias para conseguir a droga. Para quem vê de fora, custa entender como uma pessoa antes tão inteligente e atenta ao seu bem-estar possa estar agora numa situação tão crítica. Será que não consegue perceber as consequências do vício?

Não, não consegue. Em casos graves, a alteração do sistema de recompensa alcança as regiões cerebrais responsáveis pela análise das consequências futuras de nossas ações. A organização temporal do comportamento, que nos permite antecipar o que acontecerá caso façamos isto ou aquilo, para de funcionar corretamente. Com isto, o processo de tomada de decisão fica comprometido, de forma semelhante ao que acontece com pacientes com lesão no córtex pré-frontal (ver aqui e aqui).





Imagens obtidas mediante tomografia de emissão positrônica.
À esquerda o cérebro de um indivíduo normal; à direita, de um usuário de cocaína.
Os níveis de atividade cerebral nesta técnica de imagem criam imagens coloridas,
onde áreas vermelhas representam os maiores níveis de atividade cerebral e as azuis os menores.
Notar que a quantidade de áreas vermelhas no usuário de cocaína é menor que no indivíduo normal.
Estas áreas apresentam uma redução da atividade metabólica
 que com o tempo leva à alteração de várias funções cerebrais.


Assim, o viciado dificilmente consegue se ajudar. A ação de amigos e familiares é fundamental. Clínicas de reabilitação tentam diminuir a dependência química criada, mas as recaídas são muito comuns. A lembrança do prazer proporcionado pela droga volta com força quando o indivíduo retorna ao seu convívio habitual.

Mas, será que podemos modificar essas lembranças e associações numa versão moderna do filme Laranja Mecânica? Podemos manipular a memória para promover a cura?

Ao que parece podemos, mas devemos?

Isto fica para a próxima coluna.

sábado, 14 de abril de 2012

Cruzes da discórdia



Ao escrever sobre a ordem judicial que ordenou a retirada dos crucifixos e símbolos religiosos nos espaços públicos dos prédios da Justiça gaúcha, corro o risco de repetir o que muitos outros já comentaram. Mesmo assim, parece oportuno dedicar esta coluna para essa discussão uma vez que ela envolve o próprio conceito do estado laico, tão caro para a cultura científica.

Particularmente acredito que o assunto não deveria criar tanta celeuma se fossem levados a sério conceitos básicos de laicidade e igualdade. Em sua decisão -unânime- os juízes apenas interpretaram o que está escrito no artigo 19 da Constituição Federal, que assegura a laicidade do Estado e veda criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si. Ou como manifestou o relator da matéria, Desembargador Cláudio Baldino Maciel, “... o julgamento feito em uma sala de tribunal sob um expressivo símbolo de uma Igreja e de sua doutrina não parece a melhor forma de se mostrar o Estado-juiz equidistante dos valores em conflito.”.

É indubitável que a imagem da cruz possui para os cristãos um forte apelo emocional associado ao conceito de transcendência. Fui católico por muitos anos, sei bem o que isso representa e acho que esse sentimento deve ser respeitado.

É justamente por entender a importância que para alguns os símbolos religiosos possuem que sua retirada de lugares públicos –e especialmente dos locais onde se exerce a justiça- faz todo o sentido. Parece evidente que se os crucifixos são importantes para os católicos, os demais símbolos religiosos, desde a estrela de Davi do Judaísmo, a lua crescente do Islamismo, o Yin-Yang do Taoísmo, a Dharmacakra do Budismo, o Enkan do Seicho-no-ie, os símbolos da Umbanda, os das divindades Yanomamis e tantos outros são igualmente importantes e transcendentes para as demais denominações religiosas. Autorizar a permanência de apenas um dos símbolos e impedir a exibição dos demais cria distinção entre brasileiros, o que não apenas é moralmente condenável como vedado constitucionalmente. E a menos que a situação mude nosso país ainda é regido pela Constituição e não pela Bíblia.

Assim, parece exorbitante a reação das autoridades eclesiásticas ante essa decisão. Já se fala em ofensa e perseguição e se exorta à comunidade católica resistir a esta tentativa, como se de guerra santa se tratasse. Juristas católicos veem inclusive os primeiros sinais do apocalipse!

Os argumentos utilizados pelas autoridades católicas para justificar tão evidente descaso com o conceito de imparcialidade do Estado ante assuntos religiosos parecem-
me pouco convincentes. Basicamente se resumem a uma suposta tradição cristã que surge dos primórdios da nossa colonização. 

Sempre fico preocupado quando nos pedem para acreditar ou fazer algo em nome da tradição. Tradições não deveriam ser, 
a priori, um bom motivo para acreditar ou fazer qualquer coisa. Provavelmente existam tradições que valha a pena seguir e outras não. Como já foi citado por outros que discutiram este assunto, a escravidão foi uma das tradições mais persistentes. De tão tradicional ela foi defendida por Aristóteles e contemplada nos livros sagrados das principais religiões monoteístas atuais, e inclusive nas primeiras constituições do Brasil e outros países. 

Fazer algo apenas porque vem sendo feito há muito tempo não indica que nossa ação esteja correta. Tradições se mantêm não porque tenham sua origem em fatos reais ou justificáveis, e sim pela inércia de repetir o que nossos antepassados fizeram.

A Igreja Católica não deveria então se sentir perseguida ao ser lembrada que todos somos iguais perante a lei e que o Estado não tem religião oficial. Ao contrário, deveria aplaudir uma decisão que, na prática, segue uma orientação de Jesus para não fazer aos outros o que não gostaríamos que nos fizessem. Com certeza, nem as autoridades católicas nem seus seguidores achariam correto que as paredes do Supremo Tribunal Federal fossem adornadas com imagens de Oxossi ou da pomba voando no coração vermelho da Igreja Universal do Reino de Deus.






Em tempo, dias atrás (09/03/2012) esta Folha lançou uma enquete sobre o assunto. Para minha surpresa, mais de 80% dos votantes foram favoráveis à retirada dos crucifixos dos lugares públicos.

Sinais do apocalipse?