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sábado, 10 de outubro de 2015

Anastomose cefalossomática

Se o nome parece complicado, o procedimento –se der certo- será uma verdadeira proeza. Trata-se nada mais nem nada menos que o utópico transplante de corpo (nome preferível a transplante de cabeça), que se depender do neurocirurgião italiano Sergio Canavero pulará dos livros de ficção científica para as páginas dos jornais em um dia qualquer de 2017.

O procedimento faz parte da velha tentativa de dar a um cérebro ainda funcional um corpo que lhe permita se comunicar com o mundo exterior quando este já não o consegue fazer. A ideia faz todo o sentido naqueles casos em que por doença ou acidente o corpo já não permite mais que o cérebro interaja com o meio externo. Porque de fato é isso que nosso corpo é, uma interface que o cérebro controla e mediante a qual ele pode interagir com o mundo. Quando não mais funciona ou quando o cérebro já não consegue controlá-la, a ideia seria substituí-la por uma interface artificial ou, como neste caso, por um novo corpo.

A cirurgia exige a cuidadosa decapitação do doador e do receptor. Na cabeça deste último –provavelmente trabalhando em baixas temperaturas par diminuir o metabolismo cerebral enquanto a oxigenação não é restabelecida- seria fixado o novo corpo. Se suturar vasos, traqueia, esófago, músculos e fixar as vértebras cervicais é algo que cirurgiões fazem rotineiramente, fazer com que a medula espinal de doador e receptor se comuniquem de forma a restabelecer o controle motor e a sensibilidade do corpo transplantado é, pelo menos para a enorme maioria da comunidade científica uma tarefa ainda irrealizável.

E é aí que surge o dilema ético. Seria correto submeter um paciente a um procedimento experimental dessa magnitude quando as chances de sucesso são tão pequenas? As tentativas anteriores, feitas em animais, se bem mostraram que o procedimento é viável não foram nada animadoras em termos de sobrevivência e de reestabelecimento do controle nervoso. Os experimentos pioneiros nessa área foram do russo Vladimir Demikhov na década de 1950. Demikhov ficou bastante conhecido na época ao implantar cirurgicamente uma segunda cabeça no corpo de cães. As duas cabeças compartilhavam assim o mesmo sangue e mostravam reações independentes uma da outra, chegando até brigar entre elas (eticamente reprováveis nos dias atuais, os trabalhos de Demikhov formaram a base da ciência dos transplantes e muito contribuíram com o transplante pioneiro de coração realizado por Christiaan Barnard na África do Sul em 1967, e com boa parte de nosso conhecimento sobre a importância de drogas imunossupressoras para evitar a rejeição de órgãos transplantados).

Voltando ao presente, impedido de tentar essa quase loucura no hospital de Turim (Itália) onde lecionava, Canavero acabou convencendo as autoridades da província e universidade chinesa de Harbin (The Harbin Institute of Technology), que lhe ofereceram toda a infraestrutura necessária. E não é pouca. Estima Canavero que o procedimento durará em torno de 36 a 72 horas, com a participação de 150 médicos dos quais uns 80 serão cirurgiões.

Já existe até um voluntário para esta primeira cirurgia, Valery Spiridonov, um artista gráfico da Rússia de 31 anos de idade, vítima de uma severa e incurável atrofia muscular (doença de Werdnig Hoffman) que o manteve em cadeira de rodas por quase toda sua vida.

Agora é só esperar. A história toda soa disparatada quando analisamos quão longe estamos de termos a capacidade técnica para realizar um procedimento desses com sucesso. Mas Canavero acha que não, os chineses querem ficar na história e Valery Spiridonov quer um corpo funcional. Quem sabe os ingredientes necessários para um passo espetacular na história da medicina, ou para um previsível desastre.