Mas agora quase toda a comida que ela precisa está no chão, regularmente fornecida por seus cuidadores. Nica então vira um quadrúpede. Sem a elegância ao andar e correr de um felino, por exemplo, cuja linhagem já é especialista nesse lance de ser 100% quadrúpede desde bem antes que os primatas como Nica.
Mas há um detalhe curioso que também observo desde aqui. Quando a comida é depositada na grama pelos cuidadores o grupo inteiro de macacos se junta e alguns tentam recolher a maior quantidade possível de fruta para ir a algum lugar mais calmo e comer sem ameaças ou disputas. Como carregar duas ou três frutas ao mesmo tempo ocupa completamente suas mãos e braços não resta outra alternativa a Nica a não ser apelar ao bipedalismo. Seu andar agora é ainda mais desengonçado. Mesmo assim ela e outros conseguem seu objetivo e se afastam uns dez a vinte metros nesse seu andar tão peculiar.
Cientistas utilizam este tipo de observação comportamental de campo (não amadora como a minha, claro) associada ao estudo dos fósseis, da embriologia, de geologia, da genética, etc., para obter pistas sobre nós mesmos, sobre nossa história evolutiva, causas e consequências.
Hoje sabemos que bem provavelmente o primata ancestral que nos deu origem -assim como a nossos primos atuais mais próximos como chimpanzés, bonobos, gorilas e orangotangos- há uns seis milhões de anos, vivia em árvores e raramente se aventurava a passear pelo solo, até que mudanças climáticas foram transformando florestas em savanas o que incentivou que alguns grupos desses primatas se arriscassem em terra firme.
A coluna vertebral destes primos distantes no tempo não era muito diferente da que observamos em Nica. A que mudou enormemente foi a nossa. De todos os primatas nós e nossos ancestrais diretos (Homos e Australopitecíneos) fomos os únicos que adotamos uma postura completamente ereta. Nosso andar bípede se fez bem mais eficiente que o pouco frequente e desajeitado bipedalismo que nossos primos atuais mais próximos, os chimpanzés, exibem. Nosso centro de gravidade se deslocou e nossa coluna vertebral adotou uma posição vertical. Com isto nossas mãos ficaram completamente liberadas da função de locomoção e com um cérebro em rápida expansão tornaram-se as ferramentas indispensáveis para criar toda a tecnologia associada ao Homo sapiens.
Mas isso teve um preço. A coluna vertebral dos nossos ancestrais quadrúpedes tinha uma forma ligeiramente arqueada, com convexidade superior e posicionada horizontalmente. Vísceras e membros se fixavam a ela –como ainda o fazem nos quadrúpedes modernos- exercendo um jogo de forças perpendicular ao longo eixo. O impacto de uma vértebra sobre sua vizinha neste formato é mínimo. Mas ao adotar o bipedalismo cada vértebra foi se apoiando na imediata inferior. Com isto, nossas cinco vértebras lombares têm que absorver um impacto vertical intenso.
Para compensar, nossa coluna vertebral apresenta curvaturas que lhe dão um aspecto de “S” quando vista de lado, e entre cada corpo vertebral cartilagens ou discos articulares amortecem em parte o impacto, mas considerando a quantidade de consultas médicas por causa de problemas associados à coluna, vemos que isto não é suficiente.
As curvaturas naturais se acentuam com o tempo. Uma nova e problemática curvatura lateral pode surgir (escoliose). Os discos intervertebrais não resistem ao impacto constante, degeneram e deformam, invadindo o forame intervertebral comprimindo as raízes nervosas (hérnia de disco) provocando dor, formigamento e limitação de movimento. Com o constante atrito gerado pela nova postura, algumas articulações entre as vértebras podem fraturar (espondilólise) provocando dores crônicas que chegam a ser incapacitantes.
É isso. A evolução não “criou” uma coluna vertebral nova para nós humanos, perfeita e completamente adaptada ao bipedalismo. Utilizou o que já existia e fez uma adaptação, meio que às presas em termos evolutivos, já que o bipedalismo oferecia vantagens adicionais importantes e sobre ele a seleção natural atuou. É assim que funciona. Se a cuidamos bem e temos sorte nossa coluna funciona bem umas cinco décadas. Depois disso...
E agora estou aqui, de novo, com meu velho problema entre L5-S1, olhando para Nica que nem sabe o que é ter dor nas costas.
É isso. A evolução não “criou” uma coluna vertebral nova para nós humanos, perfeita e completamente adaptada ao bipedalismo. Utilizou o que já existia e fez uma adaptação, meio que às presas em termos evolutivos, já que o bipedalismo oferecia vantagens adicionais importantes e sobre ele a seleção natural atuou. É assim que funciona. Se a cuidamos bem e temos sorte nossa coluna funciona bem umas cinco décadas. Depois disso...
E agora estou aqui, de novo, com meu velho problema entre L5-S1, olhando para Nica que nem sabe o que é ter dor nas costas.
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AS CICATRIZES DA EVOLUÇÃO. GRAVIDEZ E DOR NAS COSTAS.
Se você esteve ou está grávida ou conviveu com alguém que esteve, já deve ter sentido ou visto: a postura muda e as dores lombares são frequentes. Por quê? Se achou que é por causa do peso do bebê, acertou pela metade. É bem provável que nossos primos mais próximos, os chimpanzés, não sintam dor nenhuma. Sim, ao que parece os problemas não vêm pelo peso do feto e sim por uma “conquista” evolutiva relativamente recente: o bipedalismo.
Veja a figura. Na parte superior uma fêmea de chimpanzé, a, não grávida; b, grávida. Diferente de nós, chimpanzés são fundamentalmente quadrúpedes (e arborícolas). Sua coluna vertebral tem forma de arco com convexidade superior. O centro de massa do seu corpo (CDM, círculo preto e branco) não altera sua posição em relação à articulação do quadril (coxofemoral).
Agora veja o que acontece com nossas mulheres: c, situação normal (sem gravidez); diferente dos outros primatas nossa coluna vertebral não tem mais forma de arco, mas curvas bem características. Repare na curvatura da região lombar (azul). O CDM está bem próximo à articulação coxofemoral, o que proporciona maior equilíbrio e menor gasto energético para manter a postura ereta.
Agora veja em d, com a gravidez o CDM se desloca anteriormente afastando-se da articulação coxofemoral. Mas quanto mais afastado o CDM da articulação maior o esforço para manter a postura. Para compensar (aproximar novamente o CDM da articulação), a mulher aumenta a curvatura lombar (lordose, imagem e). A postura se equilibra, mas o aumento da curvatura lombar pressiona os discos intervertebrais e eventualmente as raízes nervosas. Como esta região lombar já é uma região crítica nos humanos, a gravidez acaba aumentando os fatores que levam à alteração de discos e articulações com o passar do tempo.
Fontes:
-The Scars of Human Evolution. AAAS, 2013 Annual Meeting, https://aaas.confex.com/aaas/2013/webprogram/Session5714.html
-Whitcome KK, Shapiro LJ, Lieberman DE (2007) Fetal load and the evolution of lumbar lordosis in bipedal hominins. Nature 450(7172):1075-8