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sábado, 28 de fevereiro de 2015

Dor nas costas? Culpe a evolução.

Desde minha janela consigo ver a Nica. Várias vezes mãe e avô, mantém a agilidade e esperteza de sempre. Seus filhos e netos orbitam ao seu redor nesse espaço bem cuidado de grama onde todos se dedicam a brincar e procurar comida. Nem sempre é assim, claro. O corpo de Nica e sua prole evoluiu para viver fundamentalmente em árvores. Suas mãos e pés são bem adaptados para segurar em galhos, e ainda uma cauda preênsil com a qual pode ficar pendurada liberando os membros restantes para recolher frutas (ah! Nica é um macaco-prego, ou Sapajus apella para ser mais preciso)

Mas agora quase toda a comida que ela precisa está no chão, regularmente fornecida por seus cuidadores. Nica então vira um quadrúpede. Sem a elegância ao andar e correr de um felino, por exemplo, cuja linhagem já é especialista nesse lance de ser 100% quadrúpede desde bem antes que os primatas como Nica.

Mas há um detalhe curioso que também observo desde aqui. Quando a comida é depositada na grama pelos cuidadores o grupo inteiro de macacos se junta e alguns tentam recolher a maior quantidade possível de fruta para ir a algum lugar mais calmo e comer sem ameaças ou disputas. Como carregar duas ou três frutas ao mesmo tempo ocupa completamente suas mãos e braços não resta outra alternativa a Nica a não ser apelar ao bipedalismo. Seu andar agora é ainda mais desengonçado. Mesmo assim ela e outros conseguem seu objetivo e se afastam uns dez a vinte metros nesse seu andar tão peculiar.

Cientistas utilizam este tipo de observação comportamental de campo (não amadora como a minha, claro) associada ao estudo dos fósseis, da embriologia, de geologia, da genética, etc., para obter pistas sobre nós mesmos, sobre nossa história evolutiva, causas e consequências.

Hoje sabemos que bem provavelmente o primata ancestral que nos deu origem -assim como a nossos primos atuais mais próximos como chimpanzés, bonobos, gorilas e orangotangos- há uns seis milhões de anos, vivia em árvores e raramente se aventurava a passear pelo solo, até que mudanças climáticas foram transformando florestas em savanas o que incentivou que alguns grupos desses primatas se arriscassem em terra firme.

A coluna vertebral destes primos distantes no tempo não era muito diferente da que observamos em Nica. A que mudou enormemente foi a nossa. De todos os primatas nós e nossos ancestrais diretos (Homos e Australopitecíneos) fomos os únicos que adotamos uma postura completamente ereta. Nosso andar bípede se fez bem mais eficiente que o pouco frequente e desajeitado bipedalismo que nossos primos atuais mais próximos, os chimpanzés, exibem. Nosso centro de gravidade se deslocou e nossa coluna vertebral adotou uma posição vertical. Com isto nossas mãos ficaram completamente liberadas da função de locomoção e com um cérebro em rápida expansão tornaram-se as ferramentas indispensáveis para criar toda a tecnologia associada ao Homo sapiens



Macaco-prego (Sapajus apella). Observar a curvatura da coluna vertebral, formando um arco de convexidade superior, típica dos quadrúpedes. Devido à sua disposição horizontal da coluna, o impacto vertical entre as vértebras é mínimo.


Mas isso teve um preço. A coluna vertebral dos nossos ancestrais quadrúpedes tinha uma forma ligeiramente arqueada, com convexidade superior e posicionada horizontalmente. Vísceras e membros se fixavam a ela –como ainda o fazem nos quadrúpedes modernos- exercendo um jogo de forças perpendicular ao longo eixo. O impacto de uma vértebra sobre sua vizinha neste formato é mínimo. Mas ao adotar o bipedalismo cada vértebra foi se apoiando na imediata inferior. Com isto, nossas cinco vértebras lombares têm que absorver um impacto vertical intenso. 


Para compensar, nossa coluna vertebral apresenta curvaturas que lhe dão um aspecto de “S” quando vista de lado, e entre cada corpo vertebral cartilagens ou discos articulares amortecem em parte o impacto, mas considerando a quantidade de consultas médicas por causa de problemas associados à coluna, vemos que isto não é suficiente. 


Uma vértebra vista desde cima. À esquerda o aspecto normal, com o disco intervertebral intacto. À direita, o disco degenera devido ao impacto e seu interior (núcleo pulposo) extravasa comprimindo a raiz nervosa que sai da medula espinhal.


As curvaturas naturais se acentuam com o tempo. Uma nova e problemática curvatura lateral pode surgir (escoliose). Os discos intervertebrais não resistem ao impacto constante, degeneram e deformam, invadindo o forame intervertebral comprimindo as raízes nervosas (hérnia de disco) provocando dor, formigamento e limitação de movimento. Com o constante atrito gerado pela nova postura, algumas articulações entre as vértebras podem fraturar (espondilólise) provocando dores crônicas que chegam a ser incapacitantes. 



Imagem de ressonância magnética da região lombar da coluna vertebral humana com hérnia de disco. Observar entre as vértebras os discos intervertebrais. O círculo amarelo mostra uma protrusão do disco (núcleo polposo) em direção ao espaço medular, causando compressão dos nervos espinais (cauda equina). Ver também a diferença desse disco (degenerado) com os outros com aspecto normal.


É isso. A evolução não “criou” uma coluna vertebral nova para nós humanos, perfeita e completamente adaptada ao bipedalismo. Utilizou o que já existia e fez uma adaptação, meio que às presas em termos evolutivos, já que o bipedalismo oferecia vantagens adicionais importantes e sobre ele a seleção natural atuou. É assim que funciona. Se a cuidamos bem e temos sorte nossa coluna funciona bem umas cinco décadas. Depois disso...


E agora estou aqui, de novo, com meu velho problema entre L5-S1, olhando para Nica que nem sabe o que é ter dor nas costas.




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AS CICATRIZES DA EVOLUÇÃO. GRAVIDEZ E DOR NAS COSTAS.



Se você esteve ou está grávida ou conviveu com alguém que esteve, já deve ter sentido ou visto: a postura muda e as dores lombares são frequentes. Por quê? Se achou que é por causa do peso do bebê, acertou pela metade. É bem provável que nossos primos mais próximos, os chimpanzés, não sintam dor nenhuma. Sim, ao que parece os problemas não vêm pelo peso do feto e sim por uma “conquista” evolutiva relativamente recente: o bipedalismo.

Veja a figura. Na parte superior uma fêmea de chimpanzé, a, não grávida; b, grávida. Diferente de nós, chimpanzés são fundamentalmente quadrúpedes (e arborícolas). Sua coluna vertebral tem forma de arco com convexidade superior. O centro de massa do seu corpo (CDM, círculo preto e branco) não altera sua posição em relação à articulação do quadril (coxofemoral).

Agora veja o que acontece com nossas mulheres: c, situação normal (sem gravidez); diferente dos outros primatas nossa coluna vertebral não tem mais forma de arco, mas curvas bem características. Repare na curvatura da região lombar (azul). O CDM está bem próximo à articulação coxofemoral, o que proporciona maior equilíbrio e menor gasto energético para manter a postura ereta.
Agora veja em d, com a gravidez o CDM se desloca anteriormente afastando-se da articulação coxofemoral. Mas quanto mais afastado o CDM da articulação maior o esforço para manter a postura. Para compensar (aproximar novamente o CDM da articulação), a mulher aumenta a curvatura lombar (lordose, imagem e). A postura se equilibra, mas o aumento da curvatura lombar pressiona os discos intervertebrais e eventualmente as raízes nervosas. Como esta região lombar já é uma região crítica nos humanos, a gravidez acaba aumentando os fatores que levam à alteração de discos e articulações com o passar do tempo.


Fontes:

-The Scars of Human Evolution. AAAS, 2013 Annual Meeting, https://aaas.confex.com/aaas/2013/webprogram/Session5714.html
-Whitcome KK, Shapiro LJ, Lieberman DE (2007) Fetal load and the evolution of lumbar lordosis in bipedal hominins. Nature 450(7172):1075-8

sábado, 14 de fevereiro de 2015

A incrível história da mulher que confundiu seu marido com um dragão

Não, não se trata de uma história vinda da série Game of Thrones, e a personagem não é a bela Daenerys Targaryen (aquela Nascida da Tormenta). Os dragões que atormentavam a vida de Rosa (nome fictício, claro) nasciam das bizarrices e truques do nosso cérebro, esse velho contador de histórias, quase sempre irreais.

Mas antes de narrar o drama de Rosa temos que comentar algo sobre como nosso cérebro reconhece faces. Boa parte de nosso sistema de comunicação não verbal ocorre pela complexa e rica expressividade facial que nós humanos (e provavelmente outros primatas) possuímos. Uma parte importante de nosso cérebro é formada por redes neurais que permitem diferenciar rostos de outros tipos de imagens. É tão importante compreender a expressividade facial que só de visualizar três traços já enxergamos aí uma face, e uma face que expressa sentimentos. Os emoticons são uma prova disso. O lado ruim é que muitas vezes acabamos vendo faces onde elas nem existem, como o já famoso caso da face de Marte, um fenômeno que entra no grupo das pareidolias.

Há um bom tempo que sabemos que lesões numa área específica do cérebro denominada giro fusiforme provocam uma incapacidade de reconhecer rostos, embora a capacidade de discriminar qualquer outro tipo de objeto permaneça inalterada. Esta condição foi denominada prosopagnosia, neste caso adquirida (pela lesão). Pacientes com esta condição são incapazes de reconhecer as pessoas pelo rosto, mesmo as mais íntimas, e têm que recorrer a outros aspectos como a forma de andar, voz, cor do cabelo entre outras. Sim, meio bizarro, mas real. 


Depois descobrimos que esta cegueira perceptiva para faces pode ser também congênita, e hoje sabemos que, em diferentes graus e formas, afeta quase 2,5% da população, incluindo aqui gente famosa como Brad Pitt.

Mas agora voltemos a Rosa. Ela resolveu procurar ajuda especializada na sua terra natal (Suíça) quando aos 52 anos seus problemas alcançaram um nível desesperador. Ela não tinha grandes dificuldades para reconhecer rostos, com o que o diagnóstico de prosopagnosia não mais cabia. O problema de Rosa era que após alguns minutos de olhar o rosto de alguém, este começava a mudar. Ia se tornando completamente escuro, se alongava, surgiam orelhas pontudas e um focinho proeminente. Sua pele adotava um reptiliano aspecto escamoso e os olhos cresciam assumindo brilhantes cores amarela, verde, azul, vermelha... Excluindo o fato de não cuspir fogo pelas ventas, todos se transformavam em dragões.

O problema começara a se agravar a partir da adolescência, mas mesmo assim Rosa chegou a ter uma vida relativamente normal, com curso superior, casamento, filhos e tudo mais. Mas com o passar do tempo os dragões do seu cérebro começaram a tomar conta não apenas dos rostos de amigos, colegas e familiares. Eles apareciam quando fixava seu olhar em tomadas, em telas de computador, ou na escuridão das suas noites insones.

Desesperada, enviou uma carta narrando seu caso ao neurologista Oliver Sacks, que ficara mundialmente famoso ao descrever a história “O homem que confundiu sua mulher com um chapéu”. E foi Sacks (curiosamente, ele também portador de prosopagnosia), quem encaminhou Rosa aos seus colegas na Suíça.

Ao ouvir a história os médicos suíços suspeitaram, claro, de alguma lesão no giro fusiforme, mas os exames de ressonância magnética e o EEG não mostraram nada que pudesse ser relacionado com as alucinações visuais descritas pela paciente. Tampouco nada na sua história clínica ou qualquer outro distúrbio psiquiátrico, salvo a depressão associada à sua situação e uma ocasional (e curiosa) alucinação onde via formigas rastejando pelas suas mãos (zoopsia).

Até o momento, nenhuma abordagem comportamental ou farmacológica tinha funcionado. Finalmente os médicos tentaram com rivagstimina, uma medicação que aumenta no cérebro a quantidade de um neurotransmissor, a acetilcolina, e que é utilizada para melhorar a memória e outros aspectos cognitivos em pacientes vítimas das doenças como Alzheimer ou Parkinson.

E funcionou. Felizmente, por enquanto, a história de Rosa e seus dragões parece estar se encaminhando para um final feliz.

É isso. Um pequeno desequilíbrio químico no cérebro e somos capazes de transformar o rosto de entes queridos em terríveis dragões. Mas é também esse delicado equilíbrio químico que nos mantêm dentro dos parâmetros de normalidade. Uma ligeira flutuação pode fazer mudar nosso humor, nossa capacidade de atenção, nossa memória, nossos sentimentos e desejos. Ou pior, nos faz enfrentar um dragão ainda mais temido que os de Rosa, a depressão.


Fonte: Prosopometamorphopsia and facial hallucinations. Jan Dirk Blom, Iris E C Sommer, Sanne Koops, Oliver W Sacks, www.thelancet.com Vol 384 November 29, 2014