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sábado, 22 de abril de 2017

Imortais

Ao longo da história, a ideia da imortalidade tem sido a grande moeda de troca oferecida por quase todas as religiões. Além do amparo emocional para os problemas mundanos, a promessa que através delas conseguiremos escapar do fim inexorável -pelo menos no que diz respeito à sobrevivência da nossa alma ou espírito- tem sido o combustível mediante o qual diversas denominações religiosas sobrevivem e constroem sólidos impérios de dinheiro e poder.

Termos como alma ou espírito não são usados em ciência. O equivalente é a consciência autobiográfica, nosso eu ou self, essa parte do nosso ser que pensa, lembra, ama e odeia.

Pelo que sabemos (e estamos longe de saber tudo nessa área), essa é uma propriedade que emerge do funcionamento coordenado dos quase noventa bilhões de neurônios e as trilhões de sinapses que os conectam, formando redes neurais extremamente complexas. Se bem ainda não sabemos o que de fato a consciência é, sabemos que precisa desse substrato neural para existir, pelo menos da forma como a conhecemos. Se o modificamos, o que pode ser conseguido com o uso de drogas entre outras formas, a consciência se modifica. Se “desligamos” o cérebro a consciência desliga junto e esse desligar é proporcional ao que acontece no cérebro. Se o cérebro adoece a consciência deteriora. Desde a perspectiva científica nada indica que ao morrer o cérebro, ela sobreviva.

Isto não quer dizer que cientistas também não investiguem algo parecido com a imortalidade. Mas como nosso corpo um dia morrerá -destino natural que compartilhamos com todas as criaturas do planeta- como fazer para que o self sobreviva à morte do substrato biológico que o cria e mantém?

Aqui entram estudos de uma área da ciência denominada neurociência computacional. Entre seus objetivos -para lá de ambiciosos-, está tentar escanear e digitalizar todas as informações do cérebro de um indivíduo, toda a informação gerada pelos bilhões de neurônios junto com suas sinapses. Isto seria feito mediante tecnologias já existentes -como nano-robôs- e outras ainda em desenvolvimento. Com essa varredura seria construído um modelo computacional das redes neurais originais. Finalmente, este modelo rodaria em um substrato que não é mais orgânico, não é mais cérebro, é hardware. Um computador que emularia nossa consciência (para detalhes, ver aqui).

Caso consigam (e eles estimam que algo parecido com isto poderia já estar acontecendo na década de 2030) , será o evento mais notável na história da nossa espécie. Todo nosso conceito de individualidade teria que ser revisto. Versões do nosso eu poderiam estar rodando simultaneamente em diversas interfaces, criando situações impensáveis. Nossa noção de mente atrelada a um corpo deveria ser substituída pelo conceito de liberdade morfológica, já que poderíamos ter qualquer forma.

E claro, muito mais. Quem está familiarizado com a obra do escritor britânico Arthur C. Clarke e seus sucessores notará que qualquer semelhança não é mera coincidência.

(Para uma ótima reportagem publicada no The Guardian sobre este assunto, clique aqui)


sábado, 8 de abril de 2017

O neuronegócio

Recentemente duas das principais empresas norte-americanas do ramo da autodenominada “ginástica cerebral” (donas dos programas Lumosity e LearningRx) foram processadas pela Comissão de Comércio dos Estados Unidos (FTC). A acusação, basicamente prometer o que de fato não poderiam cumprir. De acordo com a FTC as empresas "aproveitavam o medo dos consumidores sobre o declínio cognitivo relacionado à idade, sugerindo que seus produtos poderiam evitar a perda de memória, demência e até mesmo o mal de Alzheimer ", sem oferecer base científica conclusiva para respaldar suas afirmações.

O termo “ginástica cognitiva” -ou treinamento cerebral- baseia-se na hipótese de que as habilidades cognitivas podem ser melhoradas mediante exercícios específicos para o cérebro, de uma forma semelhante ao que ocorre com a capacidade física quando praticamos esportes regularmente.

Entretanto, em uma recente revisão sobre o assunto que analisou mais de 130 trabalhos científicos, os autores concluíram que “Ainda não parece existirem provas suficientes para justificar a afirmação de que o treinamento cerebral é uma ferramenta efetiva para melhorar a cognição no mundo real. ” Ainda, “Encontramos evidências sólidas de que o treinamento cerebral melhora o desempenho das tarefas treinadas, menos evidências de que tais intervenções melhoram o desempenho em tarefas estreitamente relacionadas, e pouca evidência de que o treinamento melhora o desempenho em tarefas pouco relacionadas ou o desempenho cognitivo cotidiano”.

Isto significa -de acordo com os resultados desse estudo- que os jogos e treinos cerebrais nos deixam cada vez melhores na execução desses jogos ou treinos, mas a capacidade de transferência dessa melhora cognitiva específica para nosso dia a dia é muito limitada.

Já promessas como “evitar o mal de Alzheimer” são ainda mais temerárias. Até agora não é conhecida nenhuma forma eficaz de deter a destruição que essa doença provoca no cérebro. Alguns doentes, dependendo das suas reservas cognitivas, são capazes de mascarar o aparecimento dos sinais e sintomas por um tempo maior que outros. Não sabemos ainda muito bem qual o real motivo disso, se caraterísticas específicas do cérebro, estilo de vida, educação prévia ou algum outro fator. Não existe truque fácil para conseguir isto e a variabilidade individual de resposta parece ser bastante grande.

Embora não ofereçam risco, se envolver nesses programas demanda gasto de tempo e bastante dinheiro, tempo e dinheiro que poderiam estar sendo utilizados em atividades cognitivas e físicas diversificadas e ao mesmo tempo desafiadoras e agradáveis, que, pelo que sabemos até agora, são de fato capazes de melhorar nossas reservas cognitivas de uma forma bem mais prazerosa.

É possível que num futuro próximo tenhamos respostas mais conclusivas sobre este tipo de treinamento cerebral. Por enquanto -e como sempre- a dica é analisar qualquer promessa mirabolante sobre ganhos cognitivos, na saúde e na doença, de uma forma mais cética. O prefixo “neuro” é uma moda que pode nos custar caro.

sábado, 11 de março de 2017

Fé e falácias

Adão e Eva no Éden (Lucas Cranach de Oude) 
Conhecer nossas origens, as do universo, da vida, tem sido um dos grandes desejos e desafios da humanidade. Ao longo da história diferentes culturas criaram seus mitos cosmogônicos, tanto em Oriente como Ocidente. O judaico-cristão com seus seis dias de criação, Adão e sua costela, cobras falantes, etc., é mais um entre eles e merece o mesmo respeito que as centenas de lendas cosmogônicas que existem ou já existiram. Todas têm sua importância histórica, social e antropológica. Mas elas são apenas lendas sem validade factual.

Com o advento da ciência, umas das mais notáveis conquistas da humanidade, finalmente conseguimos em vez de inventar respostas fabulosas, fazer as perguntas corretas. No caso das nossas origens, o assunto é bem complexo. Não à toa os cientistas o chamam de “hard problem”. Sobre a origem do homem a resposta encontrada por Darwin e Wallace e corroborada em mais de 150 anos de investigação parece ser uma ótima resposta. Somos o produto de um processo evolutivo que se inicia a partir de seres muito simples bilhões de anos atrás. Não encontramos evidência científica de nenhuma inteligência superior guiando a evolução, e sim mecanismos naturais. Sobre a origem da vida e do universo, temos avançado bastante, mas devido à complexidade intrínseca desses assuntos ainda não temos respostas conclusivas.

Para natural desencanto de alguns a ciência não encontrou nada até agora que indique que uma causa primeira, algum tipo de divindade ou coisa parecida tenha dado o pontapé inicial (e proposital) no processo. Mais, boa parte dos mais importantes físicos acreditam, à luz das evidências disponíveis, que o próprio universo pode ter se originado do nada (cuidado! este nada, quântico, não é o nada no qual estamos acostumados a pensar).

Acompanhar e aceitar criticamente as evidências (e as dúvidas) que a ciência nos revela, abandonando crenças primitivas (o que não é sinônimo de abandonar a crença religiosa) não tem relação alguma com ficar -como li dias atrás nesta Folha- “Sem rumo, sem destino. Sem passado sem futuro” (Padre Charles Borg, 26/02/2017). Ao contrário, o conhecimento científico é base do pensamento crítico e pilar do desenvolvimento humano nas almejadas e ainda utópicas sociedades do conhecimento.

Afirmar que “Ao negar a existência de transcendentes propósitos” passaremos a usufruir do que está ao alcance da mão sem nos importar com os limites éticos ou regras civilizatórias, como também li, parece-me um evidente non sequitur. Se precisamos acreditar em fábulas da idade do bronze ou na recompensa ou castigo dos deuses para fazer o que é certo ou deixar de fazer o que é errado, há evidentemente algo de intrinsecamente equivocado em nossa formação moral, e quem sabe a religião tenha muito a ver com essa falha.

Em tempos de triste intolerância, nunca é demais lembrar as palavras do Dalai Lama: “Os códigos morais se dão à margem das religiões. Baseiam-se no senso comum e também na ciência. ”

sábado, 17 de dezembro de 2016

Cesáreas em alta

Uns cinco milhões de anos atrás, alguns dos nossos ancestrais primatas desceram das árvores e se aventuraram em terra firme. A partir daí um evento dramático na evolução humana começa a ocorrer: substituímos o andar quadrúpede num lento processo que nos levaria ao bipedalismo total que nos caracteriza. Liberar as mãos abriu caminho para outra transformação que culminaria uns milhões de anos depois, o gradual aumento do cérebro (encefalização) e com ele, claro, do nosso crânio.

Os dois eventos, bipedalismo e encefalização, se por um lado foram ótimos para aumentar nossas capacidades cognitivas foram péssimos para nossos pés (ver aqui) e para nossa coluna vertebral (ver aqui) . Pagamos as consequências disso até hoje na forma de entorses de tornozelo, fascite plantar, tendinite de Aquiles, dores nas pernas e tornozelos quebrados por causa de um pé que a evolução adaptou inicialmente para viver nas árvores e que agora tem que suportar nosso peso na caminhada. Ainda, escolioses, hérnias de disco e espondilólise entre outros problemas nos atormentam por causa de uma coluna vertebral que em um tempo relativamente curto em termos evolutivos teve que assumir uma posição vertical por causa do nosso bipedalismo tão particular.

Todas essas alterações posturais levaram também a um estreitamento no canal do parto, provocado pela adaptação dos ossos da bacia à nova postura. Isto acarretou um problema obstétrico sério: como nascer com uma cabeça tão grande (produto do processo de encefalização) e um canal do parto tão estreito devido à adaptação da bacia para o andar ereto? Nada fácil. Esta desarmonia entre o tamanho da cabeça do feto e a bacia da mãe (desproporção cefalopélvica) é em parte responsável por sermos os vertebrados com a maior incidência de problemas graves na hora do nascimento. Sem os recursos médicos apropriados que se tornaram disponíveis apenas a partir do século 20, entre 20 a 25% dos nascimentos humanos ao longo da nossa história evolutiva terminaram com a morte da mãe ou do filho.


Uma das formas que encontramos para solucionar este dilema obstétrico foi o parto assistido e fundamentalmente a cesárea, curiosamente eventos que foram possíveis pelo nosso cérebro tão desenvolvido, o mesmo que ajudou a criar o problema todo. Agora, um estudo recém-publicado na prestigiosa revista científica PNAS aponta que o uso frequente de cesáreas nas últimas décadas pode ter favorecido o nascimento de crianças maiores (e com isso com cabeças maiores). Isto é bom porque, até certos limites, crianças maiores têm maior chance de sobrevivência, mas como não se observa um aumento evolutivo no tamanho do canal do parto, a desproporção cefalopélvica parece ter aumentado entre 10 a 20% desde o uso regular de cesáreas. Se isto se confirmar e essa tendência continuar, cesáreas serão cada vez mais necessárias e nossas ideias sobre a conveniência do parto vaginal terão que ser revistas.

Fontes adicionais:

-The Evolutionary Origins of Obstructed Labor: Bipedalism, Encephalization, and the Human Obstetric Dilemma; Wittman, A.B. e cols., OBSTETRICAL AND GYNECOLOGICAL SURVEY; Volume 62, Number 11O; 2007

-Bipedalism and Parturition: an Evolutionary Imperative for Cesarean Delivery? Weiner, S. e cols., Clin Perinatol 35 (2008) 469–478 doi:10.1016/j.clp.2008.06.003

sábado, 10 de dezembro de 2016

Aborto

Quando sociedades começam a discutir assuntos polêmicos como legalização do uso de drogas, aborto, pena de morte, etc., a análise objetiva das experiências que outros países tiveram sobre esses assuntos é sempre relevante.

Nesse sentido o Uruguai, um dos 68 países no mundo que permitem o aborto legal sem restrições, tem uma experiência rica que merece ser conhecida. 




O Uruguai no mapa do aborto no mundo. Um isolado ponto verde ( Vermelho: proibido ou autorizado apenas para salvar a vida da mãe. Laranja: autorizado por motivos de saúde. Rosa: autorizado por motivos econômicos. Verde: sem restrições. Cinza: sem dados.
Fonte:Center for Reproductive Rights http://worldabortionlaws.com/map/

 Curiosamente, o aborto no Uruguai não constituiu crime entre 1934 a 1938, sendo o segundo país do mundo depois da União Soviética a legalizar a prática. Em 1938 é proibido e a discussão oficial sobre o tema volta apenas em 2007. Em 2008 o Congresso aprova a legalização, mas a decisão é vetada pelo então presidente Tabaré Vasquez. Em 2011 volta a discussão no Congresso e este aprova em 2012 a atual Ley de Interrupción Voluntaria del Embarazo (IVE), que é a que vigora atualmente. Em 2013 os opositores à lei conseguem a autorização da Justiça para recolher assinaturas e assim solicitar a realização de um plebiscito derrogatório. Entretanto só conseguem reunir menos de 9% das assinaturas dos votantes registrados, bem abaixo do mínimo de 25% exigido em lei para a realização do plebiscito.

A lei permite a interrupção voluntária da gravidez até a 12ª semana (em caso de estupro vai até a 14ª semana e se há risco para a saúde da mãe ou anomalias fetais, sem limite). Tomada a decisão, a mulher deve comparecer a um centro de saúde. Nessa primeira consulta são realizados os exames para confirmar a gestação. Uma vez confirmada é marcada uma segunda consulta, desta vez com uma equipe formada por um(a) obstetra, um(a) psicólogo(a) e um(a) assistente social. Estes informam e assessoram entre outras coisas sobre os aspectos clínicos e sobre a assistência que o Estado pode oferecer, algo importante no caso de mães solteiras, mas sem interferir na decisão. 






 

Após esta consulta a mulher deve aguardar cinco dias (período de reflexão) para confirmar ou não sua decisão. Caso confirme assina um consentimento médico e é realizado o procedimento, que poderá ser farmacológico ou cirúrgico. Seja qual for o procedimento utilizado, a mulher deve voltar para uma última consulta para a realização de uma outra ultrassonografia e assim confirmar se o aborto de fato ocorreu. Nesta última consulta é orientada sobre todos os métodos anticonceptivos que pode utilizar, que são oferecidos de forma gratuita, para evitar uma nova gravidez indesejada.

Ainda é cedo para avaliar os resultados da nova legislação uruguaia, mas alguns dados já chamam a atenção. O número de abortos legais obviamente cresceu, mas a mortalidade materna caiu praticamente a zero (em 2014 nenhuma mulher morreu por causa de aborto no país). Entre 2013 e 2014 o número de mulheres que mudaram de opinião e decidiram levar em frente sua gestação depois do período de reflexão aumentou 30% quando comparado com o ano anterior, chegando agora aos 9%.

Considerando que em nosso país a cada 2 dias uma brasileira morre por aborto inseguro, as notícias que vêm “del paisito” lá no Sul deveriam ser levadas em conta.