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domingo, 9 de junho de 2013

O papa e os ateus

“ Quem crê nele não é condenado; mas quem não crê já está condenado, porquanto não crê no nome do unigênito Filho de Deus.” 
 João 3:18


Por pouco, em algo que me pareceu um ato de bom senso, o novo papa -o argentino Francisco-, quase dá fim a uma das grandes incongruências morais do cristianismo. Mesmo em meus tempos de católico me parecia para lá de injusto que gente boa, por não ter fé, fosse parar no inferno. Isso não era digno de um Senhor justo, amoroso e misericordioso. Que o ingrediente fundamental para a salvação fosse amá-lo acima de todas as coisas não combinava nada com isso. Em psiquiatria existe até um termo para um comportamento desses. Provavelmente Torquemada, o sanguinário inquisidor, amasse Deus acima de tudo. Já Bertrand Russell, Carl Sagan, Albert Einstein, Arthur Schopenhauer, Charles Darwin, James Joyce, Betinho (irmão do Henfil), e tantos outros, apesar da sua obra extraordinária em benefício da humanidade mereceriam a danação eterna por sua falta de fé.

Claro que já não é um assunto que me preocupe, mas vejo que ainda causa sofrimento a muito amigo religioso. Daí minha surpresa quando leio que dias atrás durante uma homilia o papa Francisco se manifestou nestes termos respondendo a um padre que lhe formulava questões que um ateu poderia lhe fazer. 

Disse Francisco...

-O Senhor redimiu todos nós, todos nós, com o sangue de Cristo: todos nós, não apenas os católicos. Todo mundo.

-Os ateus?

-Mesmo os ateus. Todo mundo!

Francisco continuou,

-Fomos criados filhos à semelhança de Deus e o sangue de Cristo redimiu todos nós! E todos nós temos o dever de fazer o bem. E este mandamento, que todos façam o bem, eu acho, é um belo caminho para a paz. Se nós, cada um fazendo a nossa parte, se fazemos o bem para os outros, se nos encontrarmos lá, fazendo o bem, cuidadosamente, pouco a pouco, criaremos a cultura do encontro: nós precisamos muito disso. Nós devemos nos encontrar fazendo o bem.

-Mas eu não acredito (em Deus), Padre, eu sou ateu!

-Mas fazer o bem: vamos encontrar um ao outro lá.

Páginas humanistas saudaram a postura deste papa, tão afastada daquela do seu predecessor Bento XVI (que chegou a equiparar ateísmo a nazismo), não porque nos preocupe a salvação que a religião oferece, mas porque quem sabe uma postura menos intolerante desde a ICAR poderia estimular outras religiões a seguir um caminho de fraternidade. Durante séculos a Igreja Católica estigmatizou os ateus, associando-os com falta de moral. Que o papa de repente mudasse essa postura seria um evento digno de ser saudado, independente das críticas que possam ser feitas à religião ou à Santa Sé em particular.

Enfim, como escreve Chico Buarque, foi bonita a festa pá, fiquei contente! Mas estava muito bom para ser verdade. A turma do Vaticano se apressurou a corrigir as palavras do papa. Nada de ateu ir para o céu!! Quem quiser ler a ginástica verbal que os defensores da doutrina tiveram que usar para dizer que o papa não quis dizer o que disse, pode ler aqui (em inglês).

E a ginástica se justifica. Desde o Concílio Vaticano I em 1870, foi determinado que o papa é infalível quando se pronuncia a respeito de temas concernentes à fé e à moral, já que sua palavra seria revelada diretamente por Deus. Na realidade, não há nada na Bíblia que indique que isso seja assim mesmo e mais, muitos acreditam que o lance da infalibilidade foi uma forma do papa da época, Pio IX, assumir toda a autoridade e calar a oposição dentro da igreja. Mesmo assim, o dogma da infalibilidade se mantém até hoje. Não acredito nele, claro, mas seria legal que desta vez fosse levado a sério. Quem sabe perderia menos amigos quando saio por aí dizendo que sou ateu.

E voltando para o Chico...

Já murcharam tua festa, pá
Mas certamente
Esqueceram uma semente
Nalgum canto de jardim