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sexta-feira, 3 de junho de 2011

O dia em que Elliot deixou de sentir

Uma das mais influentes e provocativas teorias que tenta explicar como nosso cérebro toma decisões – a teoria do marcador somático- foi proposta nos anos 90 pelo neurocientista português Antônio Damásio. Já falamos sobre ela nesta coluna. Dizer que é o cérebro quem tomas as decisões já é em si uma provocação. Se é essa massa gelatinosa quem decide, onde está nosso livre arbítrio? De fato, para a enorme maioria dos neurocientistas que estudam cognição e comportamento, o livre arbítrio é mais uma invenção de nosso cérebro. Mas essa é outra história. 


Damásio ficara fascinado com o caso de Phineas Gage, aquele trabalhador das estradas de ferro dos Estados Unidos que em 1848 teve seu crânio atravessado por uma barra metálica de um metro e meio de comprimento e sobreviveu para contar a história. Os relatos sobre a vida de Phineas posteriores ao acidente mostram que embora ele parecesse uma pessoa normal sua capacidade de tomar a decisão correta em cada situação tinha sido destruída junto com seus lobos frontais
Mas de Phineas só tinha sobrado o crânio e embora fosse possível reconstruir o trajeto da barra, Damásio não poderia ter certeza quanto do cérebro o acidente havia destruído. E aí entra Elliot e sua peculiar história. 


Elliot era um jovem com seus trinta e poucos anos. Bem sucedido profissionalmente, inteligente, e de fácil relacionamento. Já na sua lua de mel começara a sentir fortes dores de cabeça. Como estas aumentaram decidiu consultar o médico e os exames confirmaram a existência de um meningeoma, um tumor benigno que se forma nas membranas que envolvem o cérebro. O tumor crescera já do tamanho de uma pequena laranja e embora benigno comprimia a parte do cérebro que fica sobre as órbitas. Aquela mesma região que tinha sido destruída pela barra de ferro em Phineas Gage. Caso não operasse, a compressão do cérebro acabaria provocando a morte.

A cirurgia para remoção do tumor foi bem sucedida, mas boa parte do córtex cerebral próximo ao tumor foi danificada. Testes realizados após a cirurgia não revelaram nenhum problema com Elliot. Inteligência acima da média, ótima memória, linguagem fluente. Mas a partir da cirurgia sua vida se transformou em um verdadeiro caos. Antes extremamente prático na hora de lidar com seu trabalho, agora ficava horas concentrado em detalhes irrelevantes. Decisões simples como marcar um encontro com um cliente terminavam com a desistência deste último ante tantos prós e contras que Elliot encontrava para cada possibilidade de horário e local. Escolher entre uma caneta azul ou vermelha podia demandar horas nas quais as diversas possibilidades de usar azul ou vermelho eram pormenorizadamente analisadas. Decidir tinha se tornado uma missão quase impossível. 



Em vermelho, córtex pré-frontal ventromedial, região que participa no processo de tomada de decisão, danificada  após a cirurgia em Elliot.


Não é de estranhar que em pouco tempo, apesar da sua inteligência, Elliot perdera o emprego. Contrariando a opinião de todos seus amigos e familiares entrou em negócios de altíssimo risco, com péssimos resultados. Abandonado pela esposa casou e divorciou mais duas vezes. Mas o golpe final veio quando a Previdência Social se negou renovar seu auxílio invalidez. Não parecia haver de fato nada de “inválido” em Elliot, tudo pelo contrário.

Foi nesse momento que Damásio foi chamado. 
Embora os testes realizados até esse momento não tivessem indicado nenhuma anormalidade, Damásio notou ao entrevistar Elliot que este reagia aos seus problemas como se fossem de uma pessoa à qual ele não dava a menor importância. “Eu não enxerguei sequer um toque de emoção em várias horas de conversa com ele: nenhuma tristeza, nenhuma impaciência, nenhuma frustração com minhas perguntas incessantes e repetitivas.” 

Resposta de pacientes com lesão no córtex pré-frontal. O gráfico mostra alterações na condutância elétrica da pele, que se altera quando experimentamos emoções. Observar que em indivíduos normais (linha contínua) há picos cada vez que eles observam imagens fortes como a do indivíduo ferido (E) e a resposta diminui ao ver imagens neutras (N) como a paisagem da figura. Já em pacientes com lesão no córtex pré-frontal (linha tracejada), a resposta não se altera, indicando falta de resposta emocional (Gazzaniga e cols., 2002).
Ao ser confrontado com imagens perturbadoras como corpos mutilados, tabus sexuais, imagens de violência explícita - o que em pessoas normais provoca alterações físicas de origem emocional como mudança da freqüência cardíaca e respiratória e aumento da transpiração- Elliot permanecia sem evidenciar alteração nenhuma. “Elliot não deixava de perceber sua falta de emoção. Ele dizia ter consciência que as fotos eram perturbadoras e que, antes da cirurgia, teria uma resposta emocional, mas agora não tinha nenhuma.” 

Para Damásio ficava claro que a lesão no cérebro tinha danificado o centro que fornece o valor emocional do mundo que nos rodeia. É essa informação emocional que ao longo de nossa vida vai “grudando” às decisões boas e ruins que tomamos. Quando estamos para decidir entre diversas opções e uma dessas decisões já tomadas –e marcadas- reaparece, sua “marca” emocional nos leva a afastá-la ou encorajá-la, muitas vezes de forma não consciente. Assim, a decisão mais “racional” e correta só é possível quando razão e emoção trabalham juntas. A razão é guiada pela avaliação emocional da consequência de um ato. 

Para Damásio, a dualidade cartesiana mente/corpo, razão/emoção desaparece. A mente é o resultado do funcionamento cerebral. É uma adaptação evolutiva que surge para melhorar nossas chances em satisfazer necessidades físicas e psicológicas. 


O “Penso, logo existo” de Descartes parece estar dando lugar ao “Existo, logo penso” da moderna neurociência.


Onde ler mais:
Neurociência Cognitiva, Gazzaniga e cols., 2002, Editora Artmed
O Erro de Descartes, Antônio Damásio, Companhia das Letras, 1996.

2 comentários:

  1. Oi, gostaria de saber se essa teoria é a mais aceita ou não?

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  2. Meu caro professor Roelf, a visão mecanicista e reducionista está em moda, eu sei. Contudo, analise comigo a seguinte suposição:
    (i) o cérebro como um processador de dados;
    (ii) processador está defeituoso e com isso tem problema em processar os dados observados; e
    (iii) resposta equivocada ou sem resposta para certos dados.
    Sou leigo no assunto, mas tirei essa conclusão através da idéia de que o cérebro é o meio e não o começo ou o fim da tomada de decisão ou análise/julgamento de alguma coisa. Ou seja, eu, que estou escrevendo, tenho todas as minhas capacidades em ordem, não consigo terminar de enviar esse comentário porque o computador (processador- analogia com o cérebro) pifou.
    Valeu!
    Augusto Ferreira

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