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sábado, 30 de julho de 2011

O Homo religiosus, uma teoria evolutiva sobre a fé.

Por que acreditamos em Deus?

Tempos atrás, apenas teólogos ou filósofos tentariam responder esta pergunta, mas nas últimas duas décadas cientistas de diversas áreas do conhecimento têm aportado informações valiosas que nos ajudam a compreender o fenômeno da fé. Para eles -e com razão- a fé religiosa é também um comportamento, e como tal tem uma base biológica.

As teorias dos cientistas dividem-se em duas vertentes, a educacional e a evolutiva. A explicação educacional é fácil de entender. Adultos -pelo menos muitos deles- acreditam em deuses porque lhes foi ensinado quando crianças.

Ao contrário de outros mamíferos, os primatas nascemos muito mal preparados para a vida. Ao nascer não sabemos fazer quase nada. Passamos um longo período da nossa infância aprendendo dos adultos mais próximos. Crianças aceitam sem duvidar as explicações de um adulto, fundamentalmente quando este tem uma posição de autoridade dentro do grupo. Seus cérebros estão preparados para assimilar tudo da forma mais rápida possível. Aprender rápido é uma questão de sobrevivência. Se um adulto próximo lhes ensina a não comer determinada fruta, aprenderão que essa fruta é nociva. Se um adulto lhes ensina que devem temer a um deus, o temerão.

Paralelamente a religião utiliza outro mecanismo comportamental muito conhecido pela ciência: o sistema de punição e recompensa. Na infância já assimilamos o conceito que determinados comportamentos podem ser recompensados com a felicidade eterna do paraíso ou castigados com o sofrimento eterno do inferno. Embora para uma criança de seis ou sete anos seja difícil compreender o conceito de eternidade, a ideia de sofrimento por um longo período já é assimilável. Imagens do inferno com seus inúmeros exemplos de castigo físico são rapidamente fixadas em nosso cérebro. 

Essa associação de recompensa e punição é extremamente poderosa e fixa conceitos e temores religiosos em nosso inconsciente. Não é à toa que as diversas religiões fazem questão de doutrinar (termo mais apropriado que evangelizar) desde a infância. É assim nas madraças islâmicas, nas escolas católicas, judias, etc. Nesse contexto, é compreensível o esforço do Vaticano em impor (e o fez com sucesso) um acordo com o Brasil onde o oferecimento obrigatório de ensino religioso (católico) no ensino fundamental e médio fosse contemplado. A frase bíblica “vinde a mim as criancinhas” ganha assim outra conotação.

Se bem essa teoria educacional pode explicar em parte por que os adultos acreditam em deuses hoje em dia, parece não explicar a contento a origem da fé. Em algum momento da nossa pré-história começamos a reverenciar deuses, antes que isto nos fosse ensinado por nossos pais. Qual a pressão evolutiva que fez com que populações humanas isoladas e sem contato passassem a ter esse comportamento? De alguma forma, criar e compartilhar um deus deve ter sido vantajoso para o indivíduo e para o grupo. Caso contrário o comportamento teria sido abandonado.

Nosso cérebro é bom para criar associações entre fatos mas não é bom para avaliar rapidamente se essas associações estão corretas ou não. Conectamos o fato A com o fato B, em um processo chamado aprendizagem associativa. Às vezes A está realmente conectado com B, mas às vezes os fatos que associamos não têm nenhuma relação. Assim, podemos cometer dois tipos de erro. O falso positivo é quando associamos A com B, mas A não está relacionado com B. O falso negativo é quando não associamos A com B, mas eles sim estão relacionados.

Imaginemos um homem pré-histórico perambulando pelas savanas africanas milhares de anos atrás. De repente ouve um barulho na vegetação ao seu redor. Será o vento ou um perigoso predador à espreita? Se for o vento mas ele associa o barulho ao predador imaginário (falso positivo), fugirá correndo. Cometerá um erro mas este não ameaçará sua vida. Mas se não fizer a associação e for de fato um predador (falso negativo), terá grandes chances de servir de refeição e assim seus genes não serão passados para as futuras gerações. Assim, a própria seleção natural poderia fazer que pessoas propensas ao erro do tipo falso positivo fossem selecionadas em detrimento das outras. Com o tempo, para as seguintes gerações o comportamento de associar coisas naturais a causas imaginárias e potencialmente ameaçadoras (sobrenaturais ou não) pode ter se tornado comum. 

Alguns cientistas acreditam que essa pode ser a base na crença em espíritos, fantasmas, anjos, demônios, ETs, conspirações governamentais e, claro, deuses. Ainda de acordo com essa teoria, o seguinte passo foi fixar esse vantajoso comportamento individual ao grupo. A religião pode ter sido a primeira instituição social a organizar essas crenças, de forma a serem seguidas por todos, e Deus o conceito unificador que desse sentido aos poderes ocultos e misteriosos. 

A partir daí, a mentalidade hierárquica que compartilhamos com tantos animais teria organizado toda a casta religiosa, com seus exóticos feiticeiros e seus sumos pontífices.


Fonte: Patternicity: Finding Meaningful Patterns in Meaningless Noise; Shermer, M.; Scientific American, dezembro 2008

sábado, 23 de julho de 2011

O que o Botox também esconde

Botox (à direita) altera a capacidade de nos comunicar
através das expressões faciais.
Imagem: http://drtakhar.com/cosmetic/botox-cambridge.php
Provavelmente muitos já sabem que Botox é o nome comercial de um cosmético à base de toxina botulínica (TB). Esta toxina entra na classe das neurotoxinas por agir diretamente no sistema nervoso. É produzida por uma bactéria, a Clostridium botulinum, e considerada a neurotoxina mais letal que se tem notícia. A TB impede que os nervos se comuniquem com os músculos de nosso corpo, de forma que estes ficam paralisados.

A TB pode ser ingerida acidentalmente em alimentos mal conservados, mas pode também entrar em nosso organismo através de feridas acidentais ou propositalmente causadas, como nos tratamentos estéticos. Em casos graves a TB provoca botulismo, que chega a ser fatal quando os músculos responsáveis pela respiração –como o músculo diafragma- são também paralisados.

A utilização da TB com finalidade estética é relativamente recente. Ao final da década de 1960 foi utilizada para tratamento não cirúrgico do estrabismo e outras condições onde era necessário diminuir a atividade de alguns músculos anormalmente contraídos. Só no início da década de 1990 é que começou a ser utilizada com finalidade cosmética.

A lógica da utilização do botox para eliminar rugas e linhas de expressão é bastante simples. Nossas expressões faciais são causadas pela contração de um conjunto de aproximadamente 20 músculos muito finos e superficiais, denominados em conjunto músculos mímicos ou da expressão facial. Cada vez que um deles se contrai movimenta a pele e forma uma ruga que é geralmente perpendicular à direção do músculo. 



A formação de rugas na fronte nesta expressão de surpresa ou espanto
 se deve à contração do músculo occipitofrontal.


Por exemplo, ao fazer cara de espanto e abrir exageradamente os olhos, contraímos o músculo occipitofrontal e com isto formam-se rugas horizontais em nossa fronte. Com o passar do tempo e o envelhecimento da pele, essas linhas de expressão vão se tornando mais pronunciadas até formarem uma marca permanente. Quando aplicamos botox sobre o músculo que provoca a ruga, este fica paralisado e em poucos dias a pele localizada sobre ele, lisa.



Sob a pele, mais de 20 músculos controlam nossa expressão facial


Como consequência colateral e lógica, sob a ação do botox perdemos parte da capacidade de nos expressar através da nossa face. Em poucas agulhadas eliminamos um processo de comunicação não verbal que a evolução levou milhões de anos para aperfeiçoar.

Alguns pesquisadores suspeitaram que esse atentado à nossa capacidade de nos comunicar poderia ter outras consequências. E parece que as suspeitas estão se confirmando.

Nesta coluna já escrevemos sobre a empatia, a habilidade que os primatas possuímos de nos colocar no lugar dos outros para entender e sentir o que os outros estão sentindo. Para isso utilizamos circuitos neuronais capazes de gerar tristeza, alegria ou sofrimento quando percebemos nosso interlocutor nessas condições. Em parte esses circuitos são acionados por um tipo muito particular de neurônio, os neurônios espelho, mas parece existir outros mecanismos.

Quando vemos a expressão de tristeza na face de nosso colega, quase de forma imperceptível reproduzimos inconscientemente essa expressão facial em nosso próprio rosto. Quando o fazemos, nosso cérebro “lê” essa expressão mediante mecanismos proprioceptivos e circuitos relacionados com a tristeza são disparados.

Com esse fato em mente, pesquisadores se perguntaram o que acontece com os circuitos empáticos quando não podemos reproduzir as expressões faciais que observamos nos outros. Para isto compararam dois grupos de pacientes. Um tinha feito tratamento estético com botox e outro apenas preenchimento de rugas (Restylane) sem botox, de forma que seu rosto não ficou paralisado. Foram exibidas então fotografias de pessoas com diferentes expressões. Os pesquisadores observaram que os pacientes tratados com botox tinham diminuído sua capacidade de reconhecer as expressões nas fotografias em relação ao grupo “Restylane”.

Que fica difícil reconhecer sentimentos em um rosto semiparalisado por botox é algo que muitos já tiveram oportunidade de observar. Mas que o usuário de botox não consiga entender a expressão facial dos outros - e é isso que este estudo indica-, é bem menos óbvio.

Agora os autores querem averiguar como essa consequência adicional do botox interfere na vida conjugal. Se quem usa Botox não consegue perceber o que seu parceiro está sentindo, isso poderia gerar algum tipo conflito? Particularmente, acho um certo exagero por parte dos pesquisadores. Como vimos, há mais de um mecanismo para ativar esses circuitos e “sentir na pele” o que o outro está sentindo. Em nosso dia a dia não criamos empatia pela análise de fotografias –como no estudo- e sim por uma quantidade bem maior de elementos de comunicação verbal e não verbal.

Se bem o experimento inicial reforça a importância dos circuitos empáticos, estender o alcance das suas conclusões para o mundo dos relacionamentos reais exige cuidados especiais. Caso contrário o novo estudo poderá ser sério candidato ao prêmio IgNobel


Fonte: Embodied Emotion Perception: Amplifying and Dampening Facial Feedback Modulates Emotion Perception Accuracy. Neal, DT e Chartrand TL. Social Psychological & Personality Science, April 21, 2011, doi: 10.1177/1948550611406138

quarta-feira, 20 de julho de 2011

Animais e pesquisa científica

Em 2007, por causa de uma trapalhada do então prefeito Cesar Maia, institutos científicos de Rio de Janeiro estiveram a ponto de paralisar seus experimentos utilizando animais de laboratório, jogando virtualmente no lixo todos os esforços que vinham sendo realizados para descobrir vacinas para a dengue, a aids, a malária, a leishmaniose e mais uma série de pesquisas que visavam o controle de várias doenças. Aparentemente, o prefeito assinara, sem ler, um projeto de lei que sob o nobre pretexto de proteger os animais incluía dispositivos que inviabilizavam a pesquisa científica. Avisado, voltou atrás e o erro foi corrigido. Meses depois, a Câmara Municipal de Florianópolis simplesmente proibiu a realização de pesquisas científicas utilizando animais.

Essa tendência proibicionista que praticamente tornava inviável a realização de pesquisas científicas no Brasil, foi contornada pela recente aprovação da “Lei Arouca” – em homenagem ao sanitarista e cientista Sergio Arouca - que regulamenta a experimentação com animais no Brasil.

A onda contra o uso de animais em laboratórios é muito forte, alimentada em muitos casos pelo mais puro e louvável desejo de proteger animais indefesos, mas construída com meias verdades, ignorância e em alguns casos má fé. Grupos antivivissecção têm conseguido passar a imagem do cientista como um sujeito insensível à dor dos animais que utiliza. Nada mais errôneo e mentiroso. Das atividades humanas que utilizam animais (alimentação, vestiário, trabalho, diversão, etc.) nenhuma têm tantos códigos de ética quanto a boa ciência. Nenhuma tem critérios tão rigorosos que visem que os animais sejam utilizados com sensibilidade e dignidade.

Grupos contrários ao uso de animais em pesquisas científicas geralmente utilizam alguns mitos para justificar seus pontos de vista. Vamos comentar apenas três dos mais citados.

1- O uso de animais em laboratórios poderia ser substituído por experimentos em tubos de ensaio (in vitro) ou utilizando softwares.
Errado. Experimentos in vitro utilizando cultura de células, já são usados rotineiramente pela ciência. Têm muito valor, mas não dão todas as respostas necessárias. O comportamento de células isoladas em um tubo de ensaio pode ser - e geralmente é - diferente que o das mesmas células funcionando em um organismo. Aqui as células sofrem a influência de bilhões de outras e das substâncias químicas que o organismo produz, além dos efeitos do meio ambiente. Uma célula do fígado, por exemplo, pode ter reações opostas ante uma droga dependendo se está isolada em um tubo de ensaio ou vivendo em seu lugar habitual, o fígado. Sobre os softwares, eles já vêm sendo utilizados em aula ou em algumas experiências biológicas simples. Mas estamos muito longe de criar um programa de computador capaz de reproduzir satisfatoriamente o comportamento de nosso organismo.

2- Animais de laboratório e seres humanos são muito diferentes. Muitas vezes uma doença humana não existe em animais. Assim, as drogas testadas podem ter efeitos diferentes.
Este é um argumento muito fraco. Melhor ilustrar com um exemplo. Imaginemos estar desenvolvendo uma droga contra a hepatite c. Assim, injetamos o vírus em um animal de laboratório para provocar a doença, e depois testamos a droga. Podemos descobrir então que o animal, ao contrário do humano, não desenvolve a doença. Isto quer dizer que não devemos pesquisar mais em animais? Não seria interessante averiguar por que esse animal consegue ser imune ao vírus? Qual a proteína que produz para inativá-lo? Será que podemos produzir essa mesma proteína em laboratório e depois injetar em humanos (ou outros animais) com hepatite c para curá-los? Como vemos, a diferença entre espécies pode ser tão útil para a ciência e para nossa saúde quanto sua semelhança!

3- Não é ético sacrificar animais para proteger nossa saúde ou a dos nossos filhos. Os testes deveriam ser feitos em humanos. A ciência não pode responder questões éticas. Isto cabe aos indivíduos e às sociedades. O que a ciência pode dizer é que se não é ético sacrificar animais para proteger nossa saúde também não é ético sacrificá-los para comer. Também não seria ético matar os ratos que entram em nosso quintal ou cozinha, já que o fazemos também por uma questão de saúde. O mesmo se aplica aos insetos, pragas da agricultura, etc. Sobre a experimentação em humanos, merece um artigo à parte. Mas podemos adiantar que ela já é feita. E em larga escala. Somos as cobaias finais de todos os testes clínicos de drogas, terapias, cirurgias experimentais, etc. Uma vacina só é liberada se foi testada em centenas ou até milhares de seres humanos. Mas voltaremos a este assunto da experimentação humana outro dia.

Para finalizar, a pergunta que a sociedade deve responder não é se a utilização de animais é necessária para a pesquisa científica. Sobre esta questão não há dúvidas. Os animais ainda são insubstituíveis em muitos experimentos, seja no campo da hipertensão arterial, do câncer, das patologias cerebrais (como as doenças de Parkinson e Alzheimer, retardamento mental), doenças parasitárias e infecciosas, na descoberta de novas vacinas ( hepatite, dengue, meningite, aids, malária, doença de Chagas, leishmaniose, etc.), na descoberta de novos medicamentos, antibióticos, antivirais, remédios para o controle da dor e da asma, para o tratamento de úlceras, da ansiedade e distúrbios do sono, antiinflamatórios e analgésicos, sedativos, antidepressivos, diuréticos, hormônios anticoncepcionais, quimioterápicos, antidiabéticos (insulina) e não sei quantas coisas mais.

A pergunta correta é, devemos utilizar animais para evitar o sofrimento e a morte de humanos (e outros animais)? Como pai que viu seu filho acidentado sobreviver, aliviar a dor, e ficar sem seqüelas graças aos enormes avanços da ciência e da medicina, a minha resposta é sim. Seria uma enorme hipocrisia da minha parte dizer o contrário.



Atuatlização

Este artigo foi originalmente publicado em novembro de 2007 na Coluna Ciência do jornal Folha da Região, e reproduzido posteriormente (com ou sem a autorização do autor) em alguns espaços na internet. De lá para cá, com a aprovação da Lei Arouca, as instituições que usam ou criam animais para fins científicos devem organizar suas Comissões de Ética no Uso de Animais (Ceua), formadas por pesquisadores e integrantes da sociedade de proteção aos animais, que têm como função examinar se os experimentos estão de acordo com a lei. 

Por outra parte, o CONCEA (Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal) exige que a Instituição ofereça curso de boas práticas para a utilização de animais aos estudantes que vão utilizar animais em aulas ou pesquisas. De acordo com Marcelo Morales, do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho e coordenador do CONCEA, não oferecer este curso é inconcebível. Em suas próprias palavras “Que ninguém toque em animais sem ter estudado boas práticas com animais. Este é o respeito que nos devemos ter”.

sábado, 16 de julho de 2011

O fim da homeopatia

Nesta coluna já tivemos a oportunidade de escrever sobre homeopatia. Em 2006 comentamos um editorial do prestigioso periódico cientifico inglês The Lancet, que a atacava duramente. Em 2007 alertávamos sobre a perigosa ideia da Prefeitura de São José de Rio Preto de combater a dengue com um tipo de vacinação homeopática -finalmente proibida pela ANVISA-, e em 2009 questionávamos a alegada eficácia da homeopatia em animais. 
Entretanto, em meio a tanta propaganda positiva sobre a terapia Hahnemanniana, artigos críticos, como esses e outros poucos veiculados pela imprensa, com certeza passaram despercebidos para todos. Mas aparentemente as coisas estão mudando. A eficácia da homeopatia vem sendo colocada em xeque  pela grande imprensa, com direito a espaço no Jornal Nacional e Fantástico. O que será que aconteceu? Alguma nova descoberta? Não, nada disso. Parece apenas que a indulgência demostrada em relação à homeopatia nestes mais de 200 anos está chegando ao fim.

No Reino Unido, país com um grande número de simpatizantes, a homeopatia é oferecida no sistema público de saúde. A comunidade científica local não concorda, entretanto, que o sistema de saúde gaste dinheiro em terapias sem comprovação científica. Desde o artigo do The Lancet em 2005, as críticas das autoridades médico-científicas inglesas contra a homeopatia só aumentaram, o que levou o Comité de Ciência e Tecnologia do parlamento inglês a fazer uma ampla consulta sobre o assunto.

Nessa investigação todas as partes foram ouvidas. A poderosa Associação Homeopática Britânica enviou seus mais ilustres representantes, incluindo o Dr. Peter Fisher, diretor do Royal London Homeopathic Hospital, e anexou toda a documentação que comprovaria que a homeopatia, ao contrário do que alegam seus detratores, é sim mais eficaz que o placebo.

Depois de meses de consultas, debates e investigações, as conclusões da Comité de Ciência e Tecnologia foram devastadoras. O relatório oficial conclui que “as revisões sistemáticas e meta-análises demonstram conclusivamente que os produtos homeopáticos não apresentam resultados superiores ao placebo” e ainda que “as explicações sobre como a homeopatia poderia funcionar são cientificamente implausíveis”. Finalmente, o relatório solicita a completa retirada tanto da licença oficial, que permite ainda que produtos homeopáticos sejam vendidos como medicamentos, como dos fundos do sistema de saúde para financiar esse tipo de terapia.




Parlamento inglês recomendou fim da homeopatia
 no sistema público de saúde. 
A leitura de algumas das transcrições do processo revela trechos constrangedores. Em determinado momento, o Dr. Peter Fisher foi indagado sobre o processo de agitação (sucussão) durante o preparo de medicamento homeopático (ver abaixo). Traduzo um fragmento: “Dr. Fisher afirmou que o processo de “sucussão é importante” mas foi incapaz de dizer quanta sucussão é necessária. Ele disse “que ainda não tinha sido completamente investigado” mas nos disse que “Você tem que sacudir vigorosamente […] se você sacudir levemente não funciona.””. 

Como comenta o jornal inglês The Guardian, é difícil saber o que é mais constrangedor, um senhor respeitável afirmar algo sem sentido como isso ou o fato que mesmo depois de 200 anos os homeopatas ainda não saibam quanto de sucussão um remédio homeopático precisa para funcionar.

É importante não confundir essas críticas contra a homeopatia com alegações em relação à utilização de produtos fitoterápicos. Não existe nenhuma relação. Medicamentos fitoterápicos, quando corretamente elaborados, seguem todo o processo de validação científica e podem representar um ótimo recurso terapêutico. O problema com a homeopatia não está no fato de ela utilizar “produtos naturais” e sim a dose em que são utilizados. A química comprova que diluições homeopáticas eliminam completamente qualquer rastro do princípio ativo, natural ou não. O que o paciente acaba ingerindo -pensando se tratar de medicação- é água (ou açúcar) puríssima. Uma ótima definição de placebo!


E aqui, no Brasil, como fica? Seguindo recomendações ainda existentes da Organização Mundial da Saúde (que já dá mostras de estar perdendo a paciência com a homeopatia), nosso SUS também gasta dinheiro financiando essa terapia. Se se conclui que a homeopatia não é baseada em evidências científicas, sua manutenção em nosso sistema público de saúde fica insustentável. Não haveria justificativa para manter dentro do sistema a homeopatia e ao mesmo tempo negar financiamento para outras terapias como a pajelança, a imposição de mãos, a reflexologia podal holística, os florais de Bach e outras tantas. O fato que muitos acreditem na eficácia desta ou daquela terapia não pode ser uma justificativa para financiá-las com o contado dinheiro do SUS.

Sei que os adeptos e defensores da homeopatia alegarão que isto não passa de mais uma campanha das multinacionais farmacêuticas para nos encher de alopatia. Não duvido que a indústria farmacêutica de fato queira lucrar com nossa saúde. Temos que ser cuidadosos e críticos também com ela. Mas isso não justifica que continuemos considerando plausíveis crenças homeopáticas do século 18. É mais ou menos como querer tratar tuberculose, apendicite, ou fratura de tornozelo como se fazia em 1779. 
Provavelmente nem o bom Dr. Hahnemann, se vivo estivesse, iria aceitar. 




Fontes: 
The end of homoeopathy, The Lancet (Editorial), vol. 366, pág. 690, 2005. 
Are the clinical effects of homoeopathy placebo effects? Comparative study of placebo-controlled trials of homoeopathy and allopathy; Aijing Shang e cols., The Lancet, vol. 366, pág. 726-732, 2005. 
O relatório do Comité de Ciência e Tecnologia do parlamento inglês pode ser lido aqui http://www.parliament.uk/parliamentary_committees/science_technology/s_t_homeopathy_inquiry.cfm



Como é preparado um medicamento homeopático?

Uma das leis basilares da homeopatia é a Lei da Dose Mínima, ou dos Infinitesimais, que diz respeito à diluição do princípio ativo, o controverso princípio do "quanto mais diluído mais forte". Por causa disto, os remédios homeopáticos são preparados seguindo uma série crescente de diluições. 

Primeiro, é diluída uma parte de princípio ativo em nove de água (ou outro solvente). Os homeopatas chamam esta diluição de 1DH (decimal hahnemanniana), ou seja, uma parte em dez. Para obter uma diluição 2DH mistura-se uma parte da solução anterior em nove de água, o que resulta em solução com uma parte de soluto em 100 (1/100) de solvente. Se fizermos isto mais uma vez teremos uma diluição 3DH (1/1000) e assim por diante. Se repetirmos 100 vezes, a diluição será 100DH ou uma parte de soluto em volume de solvente representado pelo número um seguido de 100 zeros. Durante essas diluições, a solução é agitada vigorosamente (sucussão) num processo denominado "Dinamização".

Além da escala decimal, é utilizada a escala centesimal hahnemanniana. Nesta escala, uma solução 1CH é 1/100, 2CH é 1/10.000, 3CH é 1/1.000.000, etc. 
Para se ter uma ideia do que esses números representam na prática, anos atrás as autoridades sanitárias de Rio Preto (SP) iniciaram uma campanha de vacinação com um produto homeopático (Eupatorium) com diluição 30CH. Isto representa uma parte do Eupatorium em volume de solvente representado pelo número um seguido de 60 zeros. O problema é que nestas diluições tão extremas não sobram mais moléculas do soluto (Eupatorium).

Isto pode ser demostrado aproveitando os estudos do grande químico e físico italiano Amadeo Avogadro (1776-1856). Não é o caso de discutir detalhes sobre esses estudos aqui, mas eles permitem calcular quanto podemos diluir uma solução sem a eliminação completa da substância original. Estatisticamente, só é garantida a presença de pelo menos uma molécula do princípio ativo em soluções de concentração igual ou maior do que uma parte de soluto por volume equivalente ao número de Avogadro de partes de solvente, ou seja, uma parte de soluto por 602.213.700.000.000.000.000.000 partes de solvente. Isso quer dizer que a partir das diluições homeopáticas 24DH ou 12CH, a chance de existir uma única molécula do princípio ativo no medicamento é praticamente nula, e diminui ainda mais se continuarmos diluindo. 

Como estes números escapam à nossa compreensão podemos exemplificar afirmando que seria necessário ingerir bem mais de 25 toneladas do medicamento para ter certeza de ter ingerido apenas uma única molécula de Eupatorium!

Muitas vezes os homeopatas reclamam de uma postura hostil e arrogante da comunidade científica em relação a eles. Em parte, têm razão. Mas muito contribuiria para melhorar essa situação se a homeopatia conseguisse explicar como é possível que um composto que não mais existe no medicamento, possa causar algum efeito fora do efeito placebo. Quem quer jogar o jogo da ciência, deve aceitar suas regras.


Fontes: 
Agradeço ao Prof. Tibor Rabóczkay, Professor Titular do Instituto de Química (USP) pela ajuda na elaboração deste artigo. O físico e a pororoca, José Colucci Jr. (http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/ofjor/ofc140220013.htm).

sábado, 9 de julho de 2011

Ela fala demais?

Quando temos a oportunidade de observar um grupo de primatas não humanos em seu habitat natural, seja ao vivo ou pela TV, não é difícil encontrar o macho líder descansando isolado, e a uma prudente distância fêmeas e filhotes em franca atividade. A ideia que a imagem passa é que os machos, ao contrário das fêmeas, não são lá muito sociáveis. E a ideia está correta.

Estudiosos da evolução dos grandes símios – gorilas, chimpanzés, orangotangos, bonobos e humanos - afirmam que dois padrões seletivos agiram distintamente sobre machos e fêmeas dos nossos ancestrais Hominidae nos últimos 15 milhões de anos.

Por um lado, a seleção sexual –direcionada pela fêmea- moldou boa parte do comportamento e anatomia dos machos, incluindo aqui as redes cerebrais. Entre não primatas, a espetacular –e pouco útil- cauda do pavão é o exemplo mais óbvio dessa seleção guiada pela fêmea, mas a necessidade do homem se destacar e ser engraçadinho faz parte da mesma competição intra-sexo que objetiva conquistar a parceira e garantir assim sua descendência.


Pavo cristatus (pavão real) e sua exuberante cauda,
produto da seleção sexual.


Dessa forma a evolução forçou o macho a ser competitivo o que redundou, por exemplo, em massa muscular e caninos avantajados e um domínio maior sobre seu corpo e seus movimentos. Isso o tornou um lutador mais eficaz, porém não favoreceu aspectos relacionados com a sociabilidade.

Por outro lado as fêmeas passaram por um processo onde a seleção social foi predominante. Este tipo de pressão seletiva é justificado pela necessidade delas compartilharem informações relacionadas com a localização de recursos naturais, presença de predadores, contato com os filhotes, etc. Nesse contexto, fêmeas mais comunicativas e cooperativas seriam capazes de garantir a sobrevivência dos seus descendentes de uma forma mais eficiente que fêmeas menos comunicativas e cooperativas.

O que os pesquisadores estão agora observando é que essas diferentes forças seletivas produziram efeitos mensuráveis na anatomia cerebral de machos e fêmeas. Estruturas cerebrais relacionadas com a agressividade, controle motor, controle da massa muscular e das funções autonômicas parecem ser comparativamente maiores em machos, enquanto que estruturas relacionadas com habilidades cognitivas que favoreçam a comunicação e a sociabilidade parecem estar mais desenvolvidas nas fêmeas.


Seleção sexual explica a agressividade e o desenvolvimento
 físico deste
Theropithecus gelada (Babuíno gelada)
 Crédito da imagem
frankfocus.com


A esta altura é bem provável que a pergunta do título deste artigo - que poderia muito bem ser “por que os homens não gostam de conversar?”- comece a encontrar uma resposta. Não que seja a única, claro, nem talvez a mais importante, mas forte o suficiente para explicar algumas das nossas tendências mais arraigadas.

Com esta bagagem evolutiva diferenciada que carregamos e compartilhamos com os demais símios é natural que surjam alguns conflitos, e com alguns agravantes. Ao contrário do gorila alfa que pode se dar ao luxo de copular e depois ficar na dele sem nenhuma obrigação de socializar -e também ao contrário das gorilas que podem abandonar seu mal-humorado parceiro e se dedicar a afazeres mais agradáveis- em nossa cultura estabelecemos um relacionamento monogâmico que obriga macho e fêmea ao convívio constante. O conflito está então desenhado.

Da mesma forma que observamos em nossos primos primatas, quando reunidas, as fêmeas da nossa espécie sentem um prazer recíproco em conversar profusamente, pular entre os mais variados assuntos, detalhar eventos diários, mesmo que corriqueiros. A circuitaria cerebral estabelecida ao longo de milhões de anos de evolução ativa os sistemas de recompensa durante essas atividades, que resultam assim prazerosas. Mas quando essa loquacidade toda é dirigida ao macho, com seus circuitos neuronais não muito bem dotados para a socialização, a coisa complica. Após alguns anos de convívio, ele pode sentir mais prazer na companhia de colegas do mesmo sexo e até almeja em sua parceira características comportamentais masculinas. Claro que a recíproca é verdadeira. A possibilidade de reencontrar suas amigas e “pôr a conversa em dia” acaba sendo mais prazerosa que compartilhar o mesmo espaço com um homem não muito interessado em prolongar conversas e entender suas necessidades biológicas de comunicação.

A compreensão da nossa carga evolutiva e do peso que ela representa em nossas ações e atitudes pode nos dar uma perspectiva mais compreensiva sobre nossas limitações e impulsos, e fundamentalmente sobre as de nossa(o) parceira(o). Pode também permitir que nos policiemos de forma a escapar das suas armadilhas e efeitos mais nocivos (mesmo por que, nossa sociedade é bem mais complexa que a dos outros primatas).

Se isso vai ser suficiente para criar uma relação duradoura é outra história. Não existe nenhuma garantia que a invenção do “até que a morte nos separe” tenha sido uma boa invenção.



Fontes: 

1. Lindenfors et al (2007) Primate brain architecture and selection in relation to sex. BMC Biology; 5: 20.
2. Dunbar, R I M (2007) Male and female brain evolution is subject to contrasting selection pressures in primates. BMC Biology; 5: 21.
3. Jahme, C. My boyfriend thinks I talk too much. The Guardian, 26 Jul 2010.





quarta-feira, 6 de julho de 2011

Cientistas acreditam em Deus?

Michelangelo: A criação de Adão. Capela Sistina
O debate entre ciência e religião não é novo e, pelo visto, torna-se cada dia mais intenso. A compatibilidade entre as duas formas de pensar tem sido negada por alguns e defendida por outros. Neste sentido, a existência de cientistas profundamente religiosos parece ser um forte argumento para alguns defensores dessa compatibilidade. Mas é preciso ter cuidado com esta premissa.

Primeiro vamos aos números. Quando se analisa esse assunto, são geralmente citados dois estudos. Um deles é do psicólogo J. H. Leuba, de 1916 (e repetido em 1933), e o outro, bem mais recente, de Larson e Withman, de 1998, publicado na prestigiosa revista Nature.


Leuba pesquisou estatisticamente a fé dos cientistas em um Deus que responde à prece e promete a imortalidade. Os entrevistados foram 1000 cientistas norte-americanos, físicos e biólogos, aleatoriamente selecionados entre a comunidade acadêmica daquela época. Desses 1000, 400 foram classificados como "grandes cientistas". Dos cientistas entrevistados (em 1916) 42% acreditavam em Deus, 42% não acreditavam e 17% tinham dúvidas ou eram agnósticos (números arredondados). Entre os grandes cientistas apenas 28% acreditavam, 53% não acreditavam e 21% tinham dúvidas ou eram agnósticos. 

Quanto à vida após a morte, 51% dos cientistas acreditavam, 20% não acreditavam e 30 % tinham dúvidas ou eram agnósticos. Entre os grandes cientistas 35% acreditavam na imortalidade, 25% não acreditavam e 44% tinham dúvidas. 

Dezessete anos depois (1933), Leuba repetiu a pesquisa apenas entre os “grandes cientistas” e constatou que a crença em Deus tinha despencado de 28 para 15%, e a crença na imortalidade de 35 para 18%.

A pesquisa de Leuba foi repetida por Larson e Withman em 1998 e 1999. Assim, em 1998 39% dos cientistas estadunidenses acreditavam em Deus, contra 45% de ateus e 15% de agnósticos. Quanto à imortalidade 38% acreditavam, 47% não acreditavam e 15% tinham dúvidas. Mas a mudança mais acentuada se deu entre os considerados “grandes cientistas”. Entre estes, apenas 7% acreditavam em Deus, 72% eram ateus, e 21% agnósticos. Quanto à imortalidade, o número dos que não acreditavam subiu para 77%. 


Larson e Withman concluem: “Ciência e religião estão se envolvendo num diálogo e debate mais ativo, mas um levantamento (amplo) indica que as crenças dos cientistas pouco mudaram desde a década de 1930 e que os cientistas mais eminentes estão mais ateus do que em qualquer outra época.”



Comparação dos dados entre os “grandes cientistas”
Crença em Deus
1914
1933
1998
Acreditam
27,7
15
7
Não acreditam
52,7
68
72,2
Duvidam/agnosticismo
20,9
17
20,8




Crença na imortalidade
1914
1933
1998
Acreditam
35,2
18
7,9
Não acreditam
25,4
53
76,7
Duvidam/agnosticismo
43,7
29
23,3


Provavelmente, são esses 7% de grandes cientistas que acreditam em Deus os que suportam, em parte, o argumento sobre a compatibilidade entre ciência e religião. Mas o argumento parece não resistir à lógica. Um cientista pode ser também racista, mas isto não cria compatibilidades entre ciência e racismo. Da mesma forma, rabinos podem furtar gravatas, o que não cria compatibilidades entre judaísmo e furto; bispos(as) evangélicos podem ser presos nos Estados Unidos por evasão fiscal, mas isto não cria compatibilidades entre evangélicos e a fraude. Padres católicos podem ter abusado sexualmente de crianças, o que não cria compatibilidades entre a religião católica e a pedofilia. Essas atitudes contraditórias do nosso comportamento são inerentes aos seres humanos, religiosos ou não, e quem sabe possam ser explicadas por neurocientistas, antropólogos, ou psicólogos, mas não criam compatibilidades entre as ações.

Uma definição importante sobre a (in)compatibilidade entre ciência e religião é fornecida pela Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos, um país com profundas raízes religiosas: "A religião e a ciência são reinos separados e mutuamente excludentes do pensamento humano, cuja apresentação no mesmo contexto leva a mal-entendidos tanto da teoria científica como da prática religiosa" (recentemente, entretanto, alguns cientistas eminentes defenderam que a fé religiosa é um fenômeno biológico/evolutivo que pode ser estudado sim pela análise científica; voltaremos a este assunto em outra oportunidade).

Independente da liberdade de cada um acreditar no que quiser, ciência e religião são incompatíveis fundamentalmente pelo método que utilizam para chegar ao conhecimento. No pensamento religioso a “verdade” é conhecida fundamentalmente através de três elementos: tradição (acredito porque meu pai acredita, porque meu avô acreditava..., e assim de geração trás geração), autoridade (acredito porque o Papa ordenou), e revelação (acredito porque fulano teve uma visão). 

Esses argumentos de autoridade e fé são incompatíveis com o método científico. Este incorpora uma mente aberta para aceitar teorias, mas seguido de um rigoroso ceticismo científico que questiona e exige evidências sobre a teoria apresentada. Sem esse ceticismo perderíamos a capacidade de separar o joio do trigo, de forma que a teoria mais absurda passaria a ter a mesma força que aquela apoiada em evidências sólidas.


Isso pode soar complicado, mas não é. Você pode prevenir a paralisia infantil do seu filho rezando, colocando cristais para “canalizar” energias “positivas” ao redor da cama, ou dando uma vacina. Se você optou pela vacina, no fundo, já está entendendo as diferenças e as incompatibilidades.



Fontes: 
Leuba, J. H. The Belief in God and Immortality: A Psychological, Anthropological and Statistical Study (Sherman, French & Co., Boston, 1916).
Larson, E. J. & Witham, L. (1998); Leading scientists still reject God; Nature, 394: 313. 
Larson, E.J. and L. Witham, L. (1999). Scientists and religion in America. Scientific American, 281: 88-93.

sexta-feira, 1 de julho de 2011

Bisfenol A – O veneno escondido


Sem dúvida, a internet tem revolucionado a forma de nos comunicar e transmitir dados. No meio dessa enxurrada de informações, algumas chamam nossa atenção. Quem já não recebeu e-mails alertando sobre o perigo que representa determinado refrigerante, cosmético, alimento e tantas outras coisas. Muitas dessas informações não passam de boatos sem nenhuma fundamentação que lotam nosso computador com bobagens de todo tipo. 
Curiosamente, no caso do bisfenol A isso não tem acontecido. E não que o bisfenol não mereça entrar no rol dessas “correntes” e lendas urbanas. Essa substância, também conhecida como BPA, é amplamente utilizada em uma enorme gama de produtos plásticos, como garrafas, embalagens para alimentos, revestimento de recipiente de leite, tubulação, mamadeiras, brinquedos, e até mesmo em selantes e resinas dentais. 

A utilização de BPA em mamadeiras e outros produtos
foi banida em vários países do mundo.


Tampouco são recentes as suspeitas que o BPA tem efeito tóxico para o organismo. Mesmo assim, a FDA (Food and Drug Administration), agência que faz o controle e autoriza a liberação para consumo dos alimentos, medicamentos, cosméticos, etc., nos Estados Unidos, tem autorizado a comercialização de produtos com BPA. Segundo ela, nas quantidades que vem sendo consumido, o BPA não traria danos para os seres humanos. Valendo-se dessa autorização, a Associação Dental Americana (ADA) por exemplo, continua a liberar e recomendar a utilização de produtos odontológicos à base de BPA.

Entretanto, nos últimos meses dados científicos e investigativos exigiram que a FDA aceitasse no início de junho deste ano reconsiderar sua posição e restabelecer o antes possível quais os níveis máximos de BPA permitidos.

Um dos alertas foi dado por um grupo de 30 renomados especialistas, que denunciam que tanto a FDA como sua contra-parte europeia EFSA (European Food Safety Authority) têm baseado a liberação do BPA em dados originados fundamentalmente de apenas dois estudos, ambos oriundos de laboratórios ligados às empresas fabricantes de BPA, e ao mesmo tempo têm dado muito menos importância a “uma grande quantidade (centenas) de experimentos independentes realizados com fundos estatais por um grande número especialistas de vários campos da ciência ao redor do mundo”. Estes estudos indicariam que o BPA é tóxico mesmo em concentrações que a FDA aprova.

Em um desses trabalhos, apresentado neste mês de junho em um congresso da Sociedade de Endocrinologia dos Estados Unidos, cientistas mostraram que baixas doses de BPA provocavam arritmias cardíacas em ratas. Esses resultados vieram a confirmar dados anteriores que indicavam uma maior frequência de doença cardíaca em pessoas com altos níveis de BPA na urina.

Em outro estudo, um grupo de pesquisadores demostrou que a exposição de ratas prenhes a doses de BPA iguais ou mesmo inferiores aos níveis considerados aceitáveis pela FDA provocavam alterações no sistema reprodutor dos fetos. Ratas nascidas de mães que tinham sido expostas a essas doses baixas de BPA nos primeiros dias de gravidez, tinham um adiantamento no início da puberdade, importantes malformações nos ovários e perda prematura do ciclo reprodutivo. Esses dados são importantes já que mostram que as doses que a FDA recomenda como seguros, de fato não o são, pelo menos para os ratos.

Um dos autores do estudo, o Dr. Heather Patisaul da Universidade da Carolina do Norte nos Estados Unidos, afirmou que embora os dados tenham sido obtidos em roedores e não em humanos “eles se somam ao crescente conjunto de evidências que indicam que a exposição a baixas doses de BPA durante o período fetal pode ter impacto na saúde reprodutiva feminina”. De acordo com Hugh Taylor, cientista chefe na Universidade de Yale nos Estados Unidos, o BPA mesmo em pequenas doses alteraria os genes necessários para uma gravidez normal, “Ele muda o código do DNA e a capacidade do DNA expressar esses genes” alertou. Segundo o cientista, a mensagem para as mulheres grávidas é: “apenas tente evitar beber e comer de embalagens de plástico e, quem sabe, não utilize selantes odontológicos nesse período. Não há nada de errado em comer vegetais frescos”.

Bom, e agora? Como escapar de um mundo rodeado de BPA por todos os lados? Selantes odontológicos, por exemplo, têm contribuído muito para a redução do número de cáries em nossa população. Até agora, aplicar selantes só tinha benefícios. A dose de BPA contida neles estaria dentro dos níveis de segurança. Mas se esses dados, como parece ser, não correspondem à realidade? Qual agora a relação custo/benefício?

A lembrança dos clorofluorcarbonos (CFC´s) vem logo à memória. Os níveis utilizados no final da década dos '60 pareciam ser seguros. Cientistas alertavam entretanto que os CFC's estavam destruindo a camada de ozônio, mas só quando o buraco nesta camada foi constatado em 1985 é que providências foram tomadas.

O mais paradoxal é que já podem ser fabricados plásticos sem BPA. Não imagino o motivo da resistência das agências reguladoras e da indústria em banir o BPA, como foi feito com o amianto, e substituí-lo por materiais mais seguros.

Você imagina?



Fontes: Why Public Health Agencies Cannot Depend on Good Laboratory Practices as a Criterion for Selecting Data: The Case of Bisphenol A; Myers, J.P e cols., Environmental Health Perspectives, 117(3), 2009.

Neonatal bisphenol-A exposure alters rat reproductive development and ovarian morphology without impairing activation of gonadotropin releasing hormone neurons; Patisaul, H. e cols., Biology of Reproduction (publicado on-line, 17/06/2009).

Bisphenol A exposure increases risk of abnormal heart rhythms in female rodents; Wang, H.S. e cols., The Endocrine Society's 91st Annual Meeting, Washington, D.C., 06/06/2009.







Atualização


Este artigo foi publicado na Coluna Ciência do jornal Folha da Região no dia 27 de junho de 2009. De lá para cá, um informe da FDA aumentou a preocupação quanto ao uso do BPA.
 O Canadá classificou o BPA como tóxico, e a Comunidade Europeia baniu o uso de BPA na fabricação de mamadeiras
No Brasil, está em tramitação na Câmara dos Deputados um projeto de lei do deputado Alfredo Sirkis (PV-RJ) que proíbe o uso do BPA em mamadeiras e produtos destinados ao consumo em todo o território nacional.