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segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

O Google nos fará mais burros?

Vinte anos atrás li o livro “A montanha mágica”. Como tantos outros, o livro de Thomas Mann não é de leitura fácil, mas lembro ser capaz, naquele tempo, de ler durante 50 a 60 páginas sem distrair minha atenção. Nada muito notável, com certeza. Mas não sei se hoje consigo fazer isso. Minha atenção rapidamente quer escapar e levar meu pensamento para um monte de coisas após as primeiras páginas de leitura. Meu cérebro envelhecendo? Sim, mas não. Por incrível que pareça, acredito que meu cérebro esteja funcionando hoje como o dos meus alunos. Como? Por quê?

Lembro também que vinte anos atrás, quando tinha que consultar alguma coisa para uma pesquisa científica, não havia muita escapatória. A fonte de toda a informação estava localizada na velha biblioteca da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, onde fazia minha pós-graduação. “Onde” localizar a informação não era problema. O relevante era a informação em si.

Mas agora as coisas não são mais assim.

Atravessamos uma mudança tecnológica que está afetando nossas habilidades cognitivas de uma forma que ainda não conseguimos avaliar. A internet está mudando nosso cérebro. Provavelmente a partir de uma região bastante específica.

Ao longo de milhões de anos de evolução os vertebrados desenvolvemos uma estrutura cerebral importantíssima: o hipocampo. O nome vem do fato dos antigos anatomistas acharem que nos humanos essa estrutura lembra a forma de um cavalo marinho (hippocampus, lembra mesmo). 





À esquerda um hipocampo humano dissecado; à direita um cavalo marinho
(hippocampus, um peixe pertencente à família Syngnathidae)



Há livros e livros (melhor, bites e bites) dedicados a essa estrutura. Não vou me estender muito aqui. O importante é que uma das suas funções básicas está relacionada com a consolidação de memória. Resumindo, o hipocampo ajuda a consolidar informações fazendo com que estas passem a fazer parte da nossa memória de longa duração. Ele é uma das primeiras estruturas a ser atingida no mal de Alzheimer (daí os primeiros déficits cognitivos dessa doença estarem relacionados com a memória). Quando danificado (por causa de cirurgias, AVEs, etc.), o paciente perde a capacidade de estabelecer novas memórias (amnésia anterógrada). 


Durante milhões de anos nossa única fonte de informação era aquilo que estava armazenado em nossos cérebros -graças à ação do hipocampo- e que era transmitido de geração em geração e de boca em boca. Tempos da tradição oral. A quantidade de informação passível de ser transmitida era limitada mas dava conta de nos salvar do ambiente hostil em que vivíamos. Sobreviver já estava bom demais.

Com o surgimento da escrita (provavelmente uns 4.000 anos AEC), boa parte da informação passou a ser registrada materialmente, o que ampliou enormemente a capacidade de transmitir informação. A popularização da leitura graças à invenção da imprensa no século 15 fez com certeza os humanos mais inteligentes. Hoje sabemos que a leitura tem um efeito de enriquecimento cognitivo real, o que significa que, bem provavelmente, nos últimos séculos a leitura modificou nossa arquitetura cerebral.

Hoje também sabemos que, em termos cognitivos, se o que lemos é muito importante, como lemos parecer ser tão importante quanto. E aí as coisas mudaram. Um estudo recente mostra que em virtude da enorme quantidade de informação disponível na internet, os leitores ficam pulando entre uma informação e outra, via hiperlinks, sem se aprofundar muito em nenhuma delas. Os pesquisadores definem esse tipo de leitura como horizontal (pouco reflexiva), que estaria substituindo a leitura profunda e detalhada (vertical).

Mas a maior mudança atinge diretamente o hipocampo. Hoje, toda a informação relevante não precisa ser armazenada no cérebro. Ela está disponível em um simples clique, e de uma forma mais rápida, completa e eficiente que o estaria se dependêssemos de nosso cérebro para acessá-la. Aí surge a grande interrogante. Se substituímos parcialmente o hipocampo pelo Google, que acontecerá com nosso cérebro? Ante a falta de dados conclusivos, os pesquisadores se dividem. Os pessimistas simplesmente acham que ficaremos cada vez menos inteligentes. Para eles, o funcionamento do hipocampo, do jeito que ele foi programado por milhões de anos de evolução, não apenas é importante para fazer a memória funcionar, mas também para outros processos cognitivos associados.

Mas têm também os otimistas (ou pelo menos, menos pessimistas; ver aqui). Estes acham que as redes hipocampais que não forem usadas em processos mnemônicos poderão ser utilizadas para outras funções cognitivas, graças à plasticidade cerebral. Quem sabe seremos menos hábeis para memorizar (como já ficamos menos hábeis para outras funções, como o olfato), mas podemos desenvolver nossa capacidade de fazer associações, aumentar a velocidade de cálculo...

Fora as especulações um fato parece evidente, embora seja extremamente positivo que tenhamos toda essa informação em nossas mãos, sem um cérebro treinado para o pensamento crítico não seremos capazes de transformar essa informação em conhecimento. E é justamente isso o que diferencia a "Era da Informação" com as ainda longínquas (principalmente por estas terras, o PISA que o diga) Sociedades do Conhecimento.


2 comentários:

  1. Boa noite! Apesar de ser advogada, acho muito interessante a área das ciências e achar recentemente este blog tem sido uma experiência ótima. Falar que sou advogada logo de início tem um propósito específico: não tenho profundo conhecimento sobre o tema, então posso cometer alguns "deslizes" no comentário de maneira não proposital.

    Já havia pensado há alguns anos sobre a influência da internet no aprendizado em geral, por atualmente ser muito mais fácil fazer pesquisas e até a troca de material entre os alunos é facilitada (ainda me formei na época em que metade da bolsa de estágio ia para a xerox e cadernos e canetas eram utilizados por praticamente todos). Percebi que, no período da faculdade (sem smartphone e com caderno) a facilidade de concentração era muito maior que hoje em dia, na pós graduação, com smartphone e computador para anotações.

    O curioso é que, ao começar a monografia na pós, uma das professoras da equipe de orientação (sim, tem pedagogos e professores especialistas na matéria atuando juntos, não sei se isso é comum nas outras áreas - no Direito não é) recomendou veementemente que eu parasse de usar o laptop para anotar as aulas e voltasse para os velhos caderno e caneta. As palavras usadas para explicar foram mais ou menos essas: "No computador, o que se anota fica na memória do computador, não na sua". E ela falou de pesquisas que já haviam sido feitas que comprovariam isso (não tenho as fontes, infelizmente).

    Resultado: minhas notas e a capacidade de concentração em sala realmente melhoraram. Não sei se por influência do que foi dito ou por realmente ser verdade a tal teoria, que de certa forma coaduna com o que foi dito neste post e achei uma informação interessante, pelo menos.

    Desculpa pelo texto longo, mas espero ter colaborado com alguma coisa. Abraço!

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  2. Tem um ditado popular, conhecido em todo o mundo, que versa assim: “a oportunidade faz o ladrão”. Lamentavelmente muita gente pensa que este ditado é verdadeiro, demonstrando falta de compreensão ou falta de dignidade. A frase certa a ser dita seria: “a oportunidade mostra o ladrão”, porque aquele que não tem intenção de roubar, não rouba, por mais oportunidade que tiver, alias, nem passaria pela cabeça a idéia de ser uma oportunidade. Desta forma a internet nos dá a oportunidade de termos informação rápida e uma visão mais ampla das idéias que rodam o mundo, deixando-nos no que poderia ser uma consciência coletiva humana mundial. Da mesma forma que o livro foi uma revolução para o conhecimento humano, a internet é uma revolução. O problema em si é como usamos isso. Normalmente as pessoas que dizem que “não gostam de ler”, utilizam a internet de uma forma diferente de aquele que tem o hábito de pesquisar. Então a idéia é que a internet deixa o ignorante, ignorante?. As pessoas que não gostam de ler, pelo menos praticam a leitura, e alguma delas termina habituando-se. Alem disso, as pessoas que não gostam de ler, tem oportunidade de saber de mais coisas entrando online. A tecnologia não é problema, o problema está em como usá-la. Mudar de um papel e um lápis para um “bloco de notas” no telefone, não incapacita a mente. Podemos perder alguma capacidade de movimentar as mãos para desenhar letras, mas é parte do avanço tecnológico. Da mesma forma a calculadora, que terminou tirando nossa capacidade de fazer cálculos mentais, mas acelerou geometricamente a tecnologia e com isto o bem estar. Quando surgiu o livro, nos tirou a necessidade de experimentar para saber?. Todos nos experimentamos o que é uma viagem espacial graças à tecnologia e a nossa capacidade de interpretação. Se uma pessoa que não usa a inteligência, pode ficar mais estúpida perante a internet, não quer dizer que esta tecnologia seja ruim. Aquele que não sabe usar um martelo se machuca. Para aquele que tem avidez cultural, a internet e a tecnologia são uma grande oportunidade. Alem de ser ecologicamente correto.

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