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sábado, 12 de outubro de 2013

Por que ainda lemos horóscopos?

Este ano* é, de fato, um ano de comemorações. Além de celebrarmos dois séculos do nascimento de Darwin e 150 anos da publicação da sua obra prima sobre a origem das espécies, comemoramos o 400° aniversário do nascimento da astronomia moderna. Ela nasce a partir das primeiras observações telescópicas do céu feitas por Galileu Galilei.

A importância de Galileu não apenas para a astronomia como para toda a ciência e o pensamento contemporâneo é enorme, talvez maior que a do próprio Darwin. Mas deixaremos este assunto para uma próxima oportunidade.

O nascimento da astronomia moderna, baseada em observações precisas e a adoção do método científico, inicia a clara separação desta com a astrologia, com a qual compartilha origens comuns. A astronomia é uma ciência cujo objeto é a observação e o estudo sistemático do universo e dos corpos celestes, analisando com rigor científico a sua natureza, a sua constituição e as suas características. Já a astrologia não é ciência e sim um conjunto de crenças e tradições que utiliza a posição aparente de alguns corpos celestes para determinar as características psicológicas e até o destino de pessoas e nações.

Assim, fica na área do misticismo e, para alguns, da diversão despreocupada. Nada contra então, e não haveria motivo para ocupar espaço em uma coluna como esta, destinada à divulgação científica.

Entretanto, um número cada vez maior de astrólogos afirma publicamente a validade "científica" da astrologia, e isto merece um esclarecimento. Por outra parte, o aspecto divertido da astrologia se perde quando descobrimos, por exemplo, que o ex-presidente dos Estados Unidos, Ronald Reagan, utilizava a astrologia para tomar as mais importantes decisões. Aí, claro, a coisa complica.





De acordo com os astrônomos, a própria base astronômica da astrologia é obsoleta. Mas não teríamos espaço nesta coluna para abordar esses detalhes. Discutiremos apenas duas de suas premissas básicas.

A primeira é que corpos celestes distantes são capazes de exercer influência sobre a personalidade e destino das pessoas. A premissa apoia-se provavelmente na observação dos efeitos da lua sobre as marés. Se a lua tem a força suficiente para influenciar as marés, como não vai influenciar as pessoas e os demais seres vivos, sendo que estes são constituídos fundamentalmente de água? O argumento parece razoável, mas está errado. A lua influencia as marés através da força gravitacional. Quanto maior o tamanho dos corpos (lua e oceanos, por exemplo) maior será a força gravitacional que os atrai, mas quanto mais longe estiverem um do outro, essa força diminui exponencialmente... Como a massa dos oceanos é muito grande, a força gravitacional entre a lua e a água oceânica é intensa a ponto de provocar as marés.

Mas a massa de água de nosso corpo é proporcionalmente insignificante, de forma que quando fazemos as contas, descobrimos que um simples mosquito pousado no braço do obstetra exercerá sobre o recém nascido uma força gravitacional muito superior àquela que poderiam exercer a lua, Marte e Júpiter juntos.

Outra premissa astrológica é a importância da data exata do nosso nascimento para estabelecer padrões de personalidade. Entretanto, de acordo com as evidências científicas que dispomos, estes padrões estão diretamente relacionados com a organização cerebral... Esta por sua vez é influenciada por vários fatores.

O primeiro é o genético. É na hora da fecundação (e não do nascimento) que se estabelece o código com a informação básica para a formação do cérebro. Os nove meses de gestação também são fundamentais. Aspectos da organização cerebral (e com isso traços básicos da personalidade) estão sujeitos a fatores relacionados com a saúde materna (se a mãe fuma, bebe, usa drogas, se alimenta adequadamente, sofre estresse, é diabética, tem alterações hormonais, etc.).

O período entre o nascimento e o fim da adolescência é também crítico para moldar o padrão de personalidade que observamos no adulto. Nesta fase é importante a quantidade de estímulos que a criança recebe, a atenção que lhe é dispensada, a alimentação, o tipo de educação –se mais restritiva ou permissiva, laica ou religiosa-, o nível sócio-econômico, os padrões culturais, etc.

Não existe nenhuma evidência que a data e hora do nascimento (que pode até ser estabelecida pela agenda do obstetra ou do hospital) tenha alguma relevância.

Mas vamos dar à astrologia o benefício da dúvida. Aceitemos por um instante que exista de fato algum tipo de força ou energia cósmica ainda não conhecida pela ciência que possa influenciar nosso destino e personalidade.

Vamos ainda aceitar que o momento do nascimento, contra todas as evidências disponíveis, tenha também importância. Se assim fosse, seria possível, com rigor científico, correlacionar data e hora de nascimento com características de personalidade. Seria possível comparar, por exemplo, indivíduos que nasceram na mesma cidade, no mesmo dia e com diferença de no máximo cinco minutos, em relação a esses atributos. Se esses estudos existissem e mostrassem o acerto nas previsões astrológicas, seria fascinante tentar compreender como isso acontece.

Esse tipo de análise exige alguns requisitos importantes: a amostragem (número de pessoas entrevistadas ou previsões checadas) deve ser o suficientemente grande para dar segurança estatística. De preferência, os indivíduos analisados devem desconhecer o motivo da consulta. Se sabem que é para testar a astrologia e eles são favoráveis a ela, provavelmente tenderão a dar repostas que a favoreçam. Os métodos estatísticos utilizados para a análise devem ser atualizados e corretamente aplicados. Finalmente, os estudos devem ter sido publicados em revistas científicas sérias, às quais toda a comunidade tenha acesso.

Consultando a literatura, encontramos poucos estudos que cumpram esses requisitos. Os dois mais importantes são da década passada, ambos analisando inteligência e personalidade, e nenhum sobre previsões futurológicas.

O primeiro deles pesquisou a inteligência (através de 19 tipos diferentes de testes) e diversas características de personalidade (baseadas no questionário Eynseck, muito utilizado pelos psicólogos) de mais de 4.300 veteranos de guerra norte-americanos e de 11.448 jovens que se alistaram no serviço militar dos Estados Unidos (uma amostragem para lá de satisfatória). Os participantes foram agrupados de diversas formas, ora considerando o dia, a estação, ou o mês nascimento; signo zodiacal, signo zodiacal associado com os elementos terra, água, fogo e ar, ou signo zodiacal associado com o gênero astrológico. Agrupando dessa forma, poderia se estabelecer, caso existisse e por menor que fosse, uma relação entre nível de inteligência ou tipo de personalidade daqueles que nasceram na primavera, ou em maio, ou são virginianos, ou do elemento terra, etc. Entretanto, os resultados mostraram de forma conclusiva a inexistência de qualquer relação entre o momento do nascimento com as características de inteligência e personalidade estudadas.

O segundo estudo foi mais intrigante. Ele analisou inteligência e personalidade de 2.101 pessoas nascidas em Londres entre 3 e 9 de março de 1958. O detalhe é que esses indivíduos nasceram com uma diferença, em media, de 4,8 minutos ("gêmeos de horário" ou time twins, não confundir com gêmeos reais, os quais sim podem ter muitas características semelhantes). Para astrólogos de renome na Inglaterra, pessoas nascidas com essa pequena diferença de tempo e na mesma cidade, deveriam ter realmente "similaridades extraordinárias de vida e temperamento". Para os próprios astrólogos consultados, essa amostragem sim daria uma evidência solida a favor da astrologia.


Os testes de inteligência e personalidade foram realizados aos 11 anos, e repetidos aos 16 e 23 anos, e incluíram testes padrão de QI, capacidade de leitura e cálculo, avaliação por parte de pais e professores de aspectos comportamentais como ansiedade, agressividade e sociabilidade; dados sobre peso, altura, capacidade visual e auditiva; auto-avaliações sobre habilidades individuais para a arte, música e esportes; e várias outras informações como ocupação, estado civil, propensão a acidentes, entre as mais de 100 variáveis analisadas.

Mais uma vez, o índice de semelhança entre os "gêmeos de horário" era o mesmo que se esperaria entre pares de pessoas escolhidas aleatoriamente: 50%. Os 2.101 piscianos do experimento eram tão parecidos entre si, como o seriam com qualquer outra pessoa de outro signo.

Desta forma, a astrologia não apenas não consegue explicar seus hipotéticos mecanismos de ação, como falha rotundamente quando suas previsões são analisadas de forma crítica e independente.

Alguns opinam que os jornais deveriam inserir ao lado da coluna dos horóscopos uma frase como "As predições astrológicas desta página são exclusivamente para entretenimento e carecem de qualquer validade científica."

Não seria uma má ideia. O que você acha?


*Este artigo foi originalmente publicado em 2009, mas a devoção astrológica permanece tão forte quanto naquele tempo.

Fontes: 
Is Astrology Relevant to Consciousness and Psi? Dean, G. and Kelly, I.W., Journal of Consciousness Studies, 10:175–198, 2003. 
The relationship between date of birth and individual differences in personality and general intelligence: A large-scale study; Hartmann, P.; Personality and Individual Differences 40:1349–1362, 2006.