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sábado, 20 de julho de 2013

O segredo dos teus sonhos

Minha bisavô, com seu cabelo branco, seu vestido preto e seu avental de sempre, entra no laboratório. Curiosa, quer saber de minhas estagiárias Isabela, Jéssica, Laís e Taís, por que estamos aí a fatiar o cérebro de ratos, em meio a esses aparelhos estranhos, cobertos de gelo. Na outra ponta da mesa, minha outra estagiária, Angelina Jolie, explica que quem sabe com esses experimentos conseguimos descobrir por que ela tem uma probabilidade 80% maior de desenvolver câncer de mama. Acho isso estranho. Tento corrigir Angelina explicando que na realidade nós estudamos os efeitos da desnutrição no cérebro em desenvolvimento, nada relacionado com câncer. Mas minha voz não sai. Depois de algumas tentativas frustradas decido abandonar o laboratório e ao atravessar a porta já estou em Montevidéu, entrando no pátio ensolarado da casa onde passei minha infância.

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Sonhar é um dos grandes mistérios da vida. Sonhos podem ser apavorantes a ponto de nos acordar. As emoções que despertam podem ser tão fortes que influenciam nosso estado de ânimo quando acordados.

Durante o sonho, imagens e fantasias como as descritas acima se misturam com a realidade. Mas ao final das contas, por que sonhamos?

Para a ciência, estudar os sonhos é um desafio carregado de dificuldades. Os cientistas têm que acreditar no que o "sonhador" relata, e não podem analisar o conteúdo dos sonhos dos animais, embora saibamos que eles também sonham.

Um dos primeiros a estudar os sonhos mediante a observação direta de pacientes foi Sigmund Freud, no começo do século 20. Freud acreditava que as pessoas sonhavam para aliviar a frustração sexual criada por desejos reprimidos. Entretanto, como a repressão social é tão poderosa, em vez de sonhar claramente sobre uma relação sexual muitas vezes nossa mente disfarçaria estes sonhos através de símbolos.

No decorrer do século 20, entretanto, a ciência que estuda o cérebro e o comportamento não encontrou evidências que apoiassem as teorias de Freud. Em sua defesa devemos lembrar que o que ele propôs foi o que podia levando em consideração seus conhecimentos clínicos, sua enorme capacidade de observação e o que se conhecia sobre o cérebro no início do século 20: quase nada. É normal que mais de cem anos depois o grande avanço da neurociência tenha tornado obsoletos muitos dos seus conceitos.

Podemos afirmar que o estudo científico do sono e dos sonhos começa na década de 1950, através dos pesquisadores Nathaniel Kleitman e William Dement. Mediante o uso do eletroencefalógrafo, um aparelho que permite registrar as ondas elétricas do cérebro, eles observaram que tanto o estado de vigília como cada fase do sono (sonolência, sono profundo e despertar) tem seu tipo de onda característica.

Na vigília, ondas rápidas e curtas, no sono profundo ondas lentas e longas. Paradoxalmente, em determinados momentos do sono profundo, as ondas voltam a ser rápidas e curtas, como quando estamos acordados, mesmo estando profundamente dormidos. A única coisa que mexemos são os olhos. Por isso, deram a esta fase do sono o nome de sono REM (Rapid Eyes Movement ou movimentos oculares rápidos). Acordando voluntários durante a fase de sono REM, estes descreviam sonhos complexos em 80% dos casos. Já quando acordados em fases de sono não-REM apenas 7% relatavam algum sonho, e o grau de elaboração destes sonhos não era tão "cinematográfico" como no sono REM. 



Registro das ondas cerebrais quando acordados (Awake), sonolentos (Drowsy), nos estágios 1 a 4 do sono e no sono REM. Observar que à medida que o sono se torna mais profundo, as ondas ficam mais longas e "afastadas" entre si (fase de "sono lento"). Mas subitamente, após a fase 3 e 4 do sono de ondas lentas, estas ficam novamente semelhantes ao estado de vigília (comparar Awake, Slow-wave sleep e REM sleep). 


Dement também observou que o conteúdo dos sonhos podia em alguns casos ser alterado pelo meio externo. Borrifando água em um voluntário na fase REM este incorporava o elemento "água" ao seu sonho. Descrevia que subitamente se encontrava nadando em um rio, navegando no oceano, ou sob uma intensa chuva.

Ao final dos anos setenta, o pesquisador Alan Hobson propôs uma teoria que ainda tem uma grande influência entre os cientistas: a ativação-síntese. De acordo com essa teoria impulsos originados em regiões profundas do encéfalo ativariam outras áreas relacionadas com a formação de imagens e com o processamento das nossas emoções.

A partir do ano 2000 novas evidências reforçaram esta teoria. Durante o sono REM essas áreas apresentam um elevado nível de atividade. Já os lobos frontais, onde se encontram os centros da memória recente assim como os que regulam o processo de tomada de decisão e integram, valoram e dão sentido à informação que se gera em outras áreas cerebrais, estão com a atividade muito diminuída. Sem a participação dos lobos frontais, as informações visuais impulsionadas pelas emoções fluem, mas não há ninguém para dar sentido lógico à historia. 



De acordo com a teoria de ativação-síntese, neurônios em áreas profundas do encéfalo (1, neste caso na ponte, em azul) disparam espontaneamente durante o sono. Estes estímulos alcançam o córtex cerebral (2) que tenta dar sentido às informações aleatórias que recebe. Como alguns sistemas corticais que analisam as informações que o encéfalo processa não estão plenamente ativos, a "síntese" que o córtex faz não corresponde à realidade que conhecemos enquanto estamos acordados. Nestas condições, é absolutamente normal voar, falar com mortos, e outras alterações espaciais e temporais. 


Para Hobson, o sonho é, na realidade, uma tentativa da mente adormecida em dar sentido a informações e emoções que surgem de forma aleatória, talvez influenciadas por eventos recentes do nosso dia-a-dia.

Além da teoria de Hobson, outras têm surgido, com maior ou menor quantidade de evidências. Mas apesar dos avanços na neurociência, o mistério perdura. Aqui vão as principais.

- Alguns pesquisadores fazem analogias com sistemas computacionais. Os sonhos seriam uma forma de remover “arquivos” e processos inúteis (junk files) que foram se acumulando durante o período de vigília, de forma que o “sistema” esteja limpo ao iniciar um novo dia.

- Sonhos seriam uma forma de enfrentar e resolver situações ameaçadoras em um ambiente seguro. Acho esta teoria particularmente atraente já que incorpora aspectos evolutivos. Sempre devemos lembrar que o ambiente que nossos ancestrais tiveram que enfrentar durante centenas de milhares de anos não foi o que vivemos hoje. Sobreviver era um desafio e tanto. Precisávamos respostas rápidas para enfrentar situações potencialmente perigosas. E respostas rápidas só acontecem quando criamos redes neuronais que as facilitem. Assim, durante o sonho teríamos a oportunidade de criar novas estratégias enfrentando situações que, mesmo bizarras, exigissem uma solução imediata. Posteriormente, ao enfrentar uma situação semelhante no mundo real as vias neurais criadas durante o sonho poderiam servir como base para uma resposta salvadora.

- Já para alguns cientistas, os sonhos não teriam nenhuma utilidade, seriam apenas um efeito colateral da ativação cerebral necessária durante a fase de sono REM, uma fase do sono sem a qual importantes processos cognitivos são bloqueados, como nos mostra aqui Sheldon Cooper...





Fontes:
1 Freud, S. (1900). The interpretation of dreams.
2 Dement, W; Kleitman, N (1957). "The relation of eye movements during sleep to dream activity: An objective method for the study of dreaming". Journal of Experimental Psychology 53 (5): 339–346. doi:10.1037/h0048189. PMID 13428941
3 Hobson, J.A. (1995). Sleep. New York: Scientific American Library.
4 Evans, C. & Newman, E. (1964) Dreaming: An analogy from computers. New Scientist, 419, 577-579.
5 Hartmann, E. (1995)Making connections in a safe place: Is dreaming psychotherapy? Dreaming, 5, 213-228.
6 Hartman, E. (2006). Why do we dream? Scientific American.