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sábado, 16 de maio de 2015

Fantasmas no cérebro

Imagem tomográfica de hemorragia cerebral (fatal).  (Joshua P. Klein & 
Robin C. Ryther.N Engl J Med 2009; 361:1786 October 29, 2009
DOI: 10.1056/NEJMicm0900232
Fico imaginando um indivíduo na Idade Média sofrendo uma alucinação visuoauditiva complexa. A imagem que lhe surge aí, conversando com ele, seja um deus, santo, demônio ou um familiar morto será tão vívida quanto qualquer outra do mundo real. Se a imagem mental vai ao encontro do seu sistema de crenças, se ele acredita que essas figuras sobrenaturais existem e podem conversar com ele, dificilmente teria motivos, com o nível de conhecimento da época, para duvidar da sua autenticidade.

Tudo indica, entretanto, que toda essa população de criaturas sobrenaturais habita em nosso cérebro. Vozes, imagens, ações, tudo está lá. Durante os sonhos parte dessa fauna vem nos visitar, mas ao acordar sabemos que isso não era real. Mas em algumas circunstâncias o cérebro produz tudo isso quando estamos acordados e aí a confusão começa, como não poderia deixar de ser.

Mas por que isto acontece? Por que o cérebro cria essas histórias sobrenaturais e nos empurra no universo místico?

Hoje conhecemos algumas respostas, mas antes devemos lembrar que, ao que parece, temos uma predisposição cerebral para dar explicações sobrenaturais para eventos naturais. Somos dualistas natos. A ideia que a alma, espírito, self, consciência -ou seja qual for o nome que dermos- é uma entidade separada do corpo físico é algo muito arraigado em nós, algo intuitivo. 

Em parte isso acontece pela dificuldade de associar as atividades mentais com o cérebro, o que não sucede com os outros órgãos e sistemas do nosso corpo. Podemos, por exemplo, fazer uma associação visceral entre os alimentos que ingerimos e os órgãos do sistema digestório. Conseguimos perceber a passagem do bolo alimentar pelo esôfago, estômago, intestinos. Sentimos músculos e ossos ao nos movimentar, ao sentar ou ao cair. Enfim, de certa forma podemos relacionar nossas vísceras com suas respectivas funções, mas com o cérebro isto é impossível. Não temos como criar uma relação perceptiva entre aquilo que o cérebro faz (pensar, sentir, calcular, decidir, planejar, desejar, etc.) com essa massa gelatinosa dentro de nossa cabeça. A impressão que temos é que a produção de ideias e pensamentos é algo que de fato não se relaciona com o corpo. Assim, a ideia dualista está fortemente arraigada e com isso os relatos sobrenaturais são facilmente assimilados.

Voltando aos fantasmas, uma das formas de fazer o cérebro fugir da realidade e nos levar para o além é mediante o uso de drogas psicoativas. Aliás, ao longo da nossa história temos utilizado algumas dessas drogas com essa exata finalidade, nos comunicar com entes sobrenaturais. Plantas como a mandrágora, o ópio, ou a Datura inoxia (a “Erva do Diabo” do Carlos Castaneda) entre outras têm sido utilizadas em rituais por xamãs e outras figuras místicas. 

Hoje temos uma boa ideia sobre como os componentes dessas plantas mexem com o equilíbrio neuroquímico a ponto de nos fazer alucinar. Anestésicos como a quetamina estão associados a “experiências fora do corpo”. Drogas como a tenamfetamina (MDA) podem trazer memórias de eventos há muito experienciados e esquecidos nos dando uma sensação de regressão. A dimetiltriptamina (DMT), princípio ativo da Ayahuasca, provoca uma dissociação entre mente e corpo e essa estranha sensação de falta de limites corporais. O fungo Claviceps (ergot), a partir do qual foi isolado o LSD, tem efeito alucinógeno e alguns historiadores acreditam que ao contaminar grãos como trigo e cevada podem ter contribuído com o clima de histeria religiosa vivido durante a Idade Média.

Outra forma de induzir experiências místicas é mediante a meditação. Estudos realizados em monges budistas e freiras franciscanas durante o processo meditativo (ou prece) mostram alterações em áreas do cérebro responsáveis por estabelecer os limites entre nosso corpo e os objetos vizinhos. Pacientes com lesão nestas áreas cerebrais têm dificuldades em discriminar onde termina o corpo e começa, por exemplo, uma mesa, tropeçando frequentemente. Estudos de imagem mostraram que durante a meditação existe uma redução do fluxo sanguíneo nessas regiões, o que produz uma diminuição da atividade cerebral local. Isso poderia explicar a sensação de perda de limites físicos, o “pertencer a um todo” ou a fusão da “alma” com a mente de Deus. 


Imagens do cérebro "normal" à esquerda e durante a meditação à direita. Observar a diminuição
do fluxo sanguíneo na região parietal direita, uma região relacionada com a orientação no tempo e espaço  

A hipóxia, diminuição da oxigenação no cérebro, também desencadeia experiências místicas. Isto foi constatado com pilotos em treinamento submetidos a forças de aceleração poderosas (ver filme abaixo), o que leva a uma diminuição do fluxo sanguíneo no cérebro com a consequente falta de oxigenação. Após o treino nos simuladores quase todos os pilotos relatavam ter passado por um estado de confusão consistindo de breves episódios de visão de túnel (por vezes com uma luz brilhante no final), bem como sentimentos de flutuação ou paralisia, e finalmente perda de consciência, e ao se recuperarem uma sensação de euforia ou de paz e serenidade. Esta descrição, claro, lembra os relatos das chamadas “Experiências de Quase Morte” (EQM). Não por coincidência, estas geralmente surgem durante episódios onde a circulação para o cérebro é diminuída. 






Várias outras situações, mesmo em indivíduos sadios, são capazes de distorcer nosso senso de realidade. Quando há uma alteração psiquiátrica ou neurológica, como na esquizofrenia, epilepsia, ou lesões cerebrais decorrentes de doença ou trauma, estas situações de disfunção cerebral são mais comuns, e temos sobre elas uma literatura muito interessante e rica. Autores como Oliver Sacks, Vilayanur Ramachandran (a quem peço emprestado o título desta postagem) entre outros, mestres na descrição desses casos, são uma referência e, fundamentalmente, uma delícia de ler.

Para os interessados, fica então a dica.

Leitura recomendada:
Why people see gosts. Michael Shermer & Pat Linse. www.skeptic.com