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sábado, 3 de maio de 2014

A ilusão do livre-arbítrio

Bereitschaftspotential. O termo parece complicado. Seu significado, algo parecido com “potencial de prontidão”, tampouco é fácil de ser explicado, mas é fundamental para entender por que boa parte (de fato a maioria) dos cientistas que estudam o cérebro e o comportamento acha que nossa ideia de livre-arbítrio, a ideia que somos livres para tomar decisões, não passa de uma ilusão reconfortante que nosso cérebro cria.

A história do debate sobre o livre-arbítrio é tão antiga quanto a própria história da humanidade. Filósofos e religiosos têm se debruçado sobre o assunto e criado uma obra muito rica. Os interessados encontrarão boas descrições sobre conceitos como determinismo cosmológico, indeterminismo, compatibilismo e outros pesquisando na internet.

Mas este não é nosso objetivo. Se bem a discussão filosófica e religiosa é interessante, livre-arbítrio e decisão fazem parte do repertório de ações do cérebro e ao contrário de outras formas de conhecimento a ciência pode nos dar algumas respostas testáveis, algo mais tangíveis que conceitos filosóficos.

Na década de 1960, pesquisadores descobriram que quando tomamos uma decisão nosso cérebro já apresenta uma atividade elétrica que antecede ao momento de sermos conscientes dessa decisão. Os experimentos pioneiros realizados pelos alemães Kornhuber e Deecke usando eletroencefalografia (EEG) mostraram que a ação de mover os dedos, por exemplo, era iniciada de forma não consciente pelo cérebro frações de segundo antes dos voluntários do experimento moverem de fato os dedos e terem consciência do que faziam. Isso foi registrado no EEG e foi essa onda elétrica pré-consciente que recebeu o nome de Bereitschaftspotential (BP).

Experimentos semelhantes foram realizados pelo grupo de Benjamin Libet nos anos 80, e os resultados foram parecidos: o cérebro já estava trabalhando numa resposta antes dos voluntários serem conscientes disso.


Resultado dos experimentos de Libet. O experimento consistiu no registro da atividade elétrica cerebral (EEG) e muscular (EM) de voluntários. Estes teriam que cumprir uma tarefa bem simples: numa tela de TV um ponto ia se deslocando numa circunferência (imaginemos que esta circunferência é um relógio e o ponto vai se deslocando número a número). O voluntário deveria escolher quando pulsar um botão de forma absolutamente livre, apenas deveria anunciar em qual posição se encontrava o ponto quando teve a intenção de apertar o botão. No gráfico, o momento da “consciência da intenção” está registrado como ”W - Awareness of intention”, e o momento de mexer o dedo como “Action”. Observar que há uma demora normal de 200 milissegundos entre a decisão consciente e a ação, tempo necessário para a ordem motora gerada no cérebro chegar aos músculos que controlam o dedo. Mas o que surpreendeu a todos é que 350 milissegundos antes da decisão consciente relatada pelo voluntário, já existia uma intensa atividade cerebral (“Rise of RP”).


Com o surgimento de modernas técnicas de imagem cerebral como a ressonância magnética funcional (fMRI) cientistas tiverem ao alcance uma tecnologia bem mais sofisticada que a utilizada por Kornhuber, Deecke e Libet.

Em 2008 o neurocientista John-Dylan Haynes e seu grupo, utilizando fMRI, registraram resultados semelhantes aos de Libet num experimento algo mais complexo, associando a visualização de letras numa tela de computador à ação de movimentar os dedos. Os resultados foram de fato ainda mais surpreendentes. Em alguns casos a atividade cerebral, o BP, se iniciou até 10 segundos antes do indivíduo ter consciência do que faria (ver vídeo abaixo). O mais chocante é que os pesquisadores, olhando as imagens que estavam sendo geradas mediante a fMRI foram capazes de saber o que os voluntários decidiriam segundos antes que estes decidissem!! Não apenas estavam lendo a mente, mas o faziam antes que o dono da mesma!





Imagem fMRI mostrando áreas de ativação no córtex frontopolar (áreas coloridas no cérebro,
 sobre os olhos). De acordo com os autores, esta seria uma das regiões onde inicialmente
 começa a ser gerada a decisão, antes de termos consciência dela 
(extraído de Bode, S. e cols., PloS One, Vol. 6, e21612).

De acordo com os autores a demora entre o início da planificação cerebral e a percepção consciente da decisão a ser tomada ocorre porque ante a tarefa proposta várias áreas cerebrais trabalham na melhor resposta possível e só uma vez encontrada a solução a decisão chega à esfera consciente. E isso, claro, leva seu tempo.



Neste vídeo, Marcus Du Sautoy (Professor de Matemática na Universidade de Oxford e 
da Cátedra Simonyi para a Compreensão Pública da Ciência) participa de um experimento
 realizado por John-Dylan Haynes (Professor no Centro Bernstein de Neurociência
 Computacional de Berlim) na tentativa de encontrar a base neurológica para a tomada de decisão.


Como fica então a crença que somos “nós” que estamos decidindo? Calma, os experimentos nessa área estão no início. Críticos do “determinismo cerebral” argumentam, e com razão, que decisões sobre mexer os dedos são simples demais comparadas a outras mais complexas que tomamos, como casar, divorciar, trocar de emprego, etc. Só quando tenhamos as condições técnicas para aprimorar estes experimentos (e não demorará muito) teremos uma ideia mais aproximada sobre se o que estamos vendo em relação a decisões simples também se aplica a todas as outras. Mas o fato dos resultados desde a década de 1960 apontarem na mesma direção, mesmo com tecnologias mais e mais sofisticadas, é bastante significativo.

Por outra parte, de acordo com os próprios cientistas, a noção do “eu” como algo separado do corpo não passa de uma ilusão que o cérebro cria. Como comenta Michael Gazzaniga, um dos maiores neurocientistas da atualidade, mente e cérebro são uma coisa só. A sensação de que existe um eu separado do corpo, que o habita e controla, é apenas o resultado da atividade cerebral que nos engana. A decisão e a posterior tomada de consciência sobre essa decisão fazem parte do mesmo processo que o cérebro cria para que possamos sobreviver e procriar. Mais uma conquista evolutiva.

Se tudo isto se confirmar nossa noção de livre-arbítrio terá que mudar radicalmente. Teremos que encontrar um adjetivo mais apropriado que “livre” para descrever como e por que decidimos o que decidimos.


6 comentários:

  1. Essa parece uma área de estudo bem promissora.
    Eu fiquei aqui pensando com meus botões: será que não seria redundante para o processo evolutivo criar uma "consciência" e ter que supri-la com a ilusão de liberdade? Em termos energéticos, talvez isso custaria bastante às espécies que possuíssem esse mecanismo. Há que ter algum benefício que compense esse investimento. Já existe algo a esse respeito, professor?

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    1. Não sei se ha respostas para isso Fábio. O que eu li (do Gazzaniga) que uma vez tomada a decisão pelo cérebro, é necessário contextualizá-la, incorporá-la a nossa memória autobiográfica. Nesse sentido ter uma consciência como a nossa deve ajudar muito. Com essa contextualização, é provável que da próxima vez que nosso cérebro se deparar com escolhas e decisões semelhantes, a experiência criada pela consciência permita decidir de forma mais apropriada.

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  2. Uma mente lúcida não escolhe, simplesmente vê claramente o que deve ser feito. Quando temos escolha é porque estamos confusos. . Não é um paradoxo dizer que “não existe liberdade quando se pode escolher”. Nossas escolhas são baseadas no conhecimento, e por ser assim estão condicionadas a nossa experiência, idéias e lembranças. O “querermos algo” está acoplado a nossa experiência, idéias ou lembranças. E por ser a nossa decisão condicionada pelo nosso conhecimento, não pode nos deixar num momento de liberdade. A liberdade, se for condicionada, é qualquer coisa menos liberdade. O “livre arbítrio” é contra-senso. Da mesma forma se encontra o que chamam de “liberdade de pensamento”.

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  3. esse experimento já foi desbancado:

    e temos sim livre arbítrio pra tudo, Libet apenas quis dizer que nossas escolhas podem ser influenciadas pelo subconsciente. apenas isso.

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    1. Não. Na realidade, os resultados de Libet foram corroborados por estudos recentes, como os citados do grupo de John-Dylan Haynes. A questão do livre-arbítrio permanece em estudo pela neurociência, está relacionada com o processo de tomada decisão, e tudo isso tem uma base neurobiológica.

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    2. a ciencia está mais do lado do livre-arbitrio do que voce imagina
      agora descobriram que até vermes tem livre arbítrio.
      e ainda mais o grande problema da consciencia, que ninguém resolve..
      e outro exemplo é a mecanica quantica, que ferrou com o determinismo
      o livre arbitrio existe sim, na minha opinião

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