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sábado, 14 de abril de 2012

Cruzes da discórdia



Ao escrever sobre a ordem judicial que ordenou a retirada dos crucifixos e símbolos religiosos nos espaços públicos dos prédios da Justiça gaúcha, corro o risco de repetir o que muitos outros já comentaram. Mesmo assim, parece oportuno dedicar esta coluna para essa discussão uma vez que ela envolve o próprio conceito do estado laico, tão caro para a cultura científica.

Particularmente acredito que o assunto não deveria criar tanta celeuma se fossem levados a sério conceitos básicos de laicidade e igualdade. Em sua decisão -unânime- os juízes apenas interpretaram o que está escrito no artigo 19 da Constituição Federal, que assegura a laicidade do Estado e veda criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si. Ou como manifestou o relator da matéria, Desembargador Cláudio Baldino Maciel, “... o julgamento feito em uma sala de tribunal sob um expressivo símbolo de uma Igreja e de sua doutrina não parece a melhor forma de se mostrar o Estado-juiz equidistante dos valores em conflito.”.

É indubitável que a imagem da cruz possui para os cristãos um forte apelo emocional associado ao conceito de transcendência. Fui católico por muitos anos, sei bem o que isso representa e acho que esse sentimento deve ser respeitado.

É justamente por entender a importância que para alguns os símbolos religiosos possuem que sua retirada de lugares públicos –e especialmente dos locais onde se exerce a justiça- faz todo o sentido. Parece evidente que se os crucifixos são importantes para os católicos, os demais símbolos religiosos, desde a estrela de Davi do Judaísmo, a lua crescente do Islamismo, o Yin-Yang do Taoísmo, a Dharmacakra do Budismo, o Enkan do Seicho-no-ie, os símbolos da Umbanda, os das divindades Yanomamis e tantos outros são igualmente importantes e transcendentes para as demais denominações religiosas. Autorizar a permanência de apenas um dos símbolos e impedir a exibição dos demais cria distinção entre brasileiros, o que não apenas é moralmente condenável como vedado constitucionalmente. E a menos que a situação mude nosso país ainda é regido pela Constituição e não pela Bíblia.

Assim, parece exorbitante a reação das autoridades eclesiásticas ante essa decisão. Já se fala em ofensa e perseguição e se exorta à comunidade católica resistir a esta tentativa, como se de guerra santa se tratasse. Juristas católicos veem inclusive os primeiros sinais do apocalipse!

Os argumentos utilizados pelas autoridades católicas para justificar tão evidente descaso com o conceito de imparcialidade do Estado ante assuntos religiosos parecem-
me pouco convincentes. Basicamente se resumem a uma suposta tradição cristã que surge dos primórdios da nossa colonização. 

Sempre fico preocupado quando nos pedem para acreditar ou fazer algo em nome da tradição. Tradições não deveriam ser, 
a priori, um bom motivo para acreditar ou fazer qualquer coisa. Provavelmente existam tradições que valha a pena seguir e outras não. Como já foi citado por outros que discutiram este assunto, a escravidão foi uma das tradições mais persistentes. De tão tradicional ela foi defendida por Aristóteles e contemplada nos livros sagrados das principais religiões monoteístas atuais, e inclusive nas primeiras constituições do Brasil e outros países. 

Fazer algo apenas porque vem sendo feito há muito tempo não indica que nossa ação esteja correta. Tradições se mantêm não porque tenham sua origem em fatos reais ou justificáveis, e sim pela inércia de repetir o que nossos antepassados fizeram.

A Igreja Católica não deveria então se sentir perseguida ao ser lembrada que todos somos iguais perante a lei e que o Estado não tem religião oficial. Ao contrário, deveria aplaudir uma decisão que, na prática, segue uma orientação de Jesus para não fazer aos outros o que não gostaríamos que nos fizessem. Com certeza, nem as autoridades católicas nem seus seguidores achariam correto que as paredes do Supremo Tribunal Federal fossem adornadas com imagens de Oxossi ou da pomba voando no coração vermelho da Igreja Universal do Reino de Deus.






Em tempo, dias atrás (09/03/2012) esta Folha lançou uma enquete sobre o assunto. Para minha surpresa, mais de 80% dos votantes foram favoráveis à retirada dos crucifixos dos lugares públicos.

Sinais do apocalipse?

10 comentários:

  1. Roelf, não venho aqui para discutir este texto, que por sinal muito bem explicitado expondo com clareza a sua opinião - ser inteligente é, apesar de muitos não concordarem, acreditar no que diz convencendo. E quando há convencidos as alas estremecem. Também não é sobre as alas que quero falar.
    Quero simplesmente dizer que acho o máximo tudo o que você escreve.

    Tenha uma boa semana.

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  2. Os protestantes são os que mais defendem o estado laico e os que menos se importaram da retirada da cruz,porém deve se levar em conta que quem pediu a retirada foi uma ong por se sentir ultrajada pela igreja pelo fato de não admitir a união homo-afetiva,caso contrario com certeza este pedido nem existiria,o mesmo argumento serve quando no Rio de janeiro o governador quis colocar o arco iris simbolo gls nas cartilhas escolares onde deveria estar o hino nacional onde esta o estado laico nesta hora?

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  3. Excelente! Chega de Estado laico só no papel!

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  4. Comparar o símbolo da Cruz de Cristo, com imagens de Oxossi ou da pomba voando no coração vermelho da Igreja Universal do Reino de Deus, é um absurdo, é falta de conhecimento do projeto de salvação de Deus em Cristo Jesus. Hoje em dia vemos pessoas totalmente despreparadas para falar de coisas que não conhecem (ignorância). A vida humana na Terra é passageira, e neste pequeno espaço de tempo onde uns vivem mais e outros menos, devemos fazer o melhor possivel como filhos de Deus, hoje as pessoas acham que o mais importante na vida é o "EU", a felicidade pessoal deve ser conquistada a qualquer custo, porém para ser filho Deus, devemos olhar para Jesus, (filho Unigenito do Pai) para sabermos que é pela Cruz é conseguimos chegar a Deus, a cruz e tudo o que ela representa é a ponte que nos liga a Deus. Querem retirar a cruz de locais publicos, é uma decisão que um dia terão que prestar contas não para Igreja mas para Deus, Jesus disse quem me negar o negarei também no dia do juizo. Bem isso é uma questão de Fé. Eu creio em Deus e tudo o que ele significa, pois fui criado por Deus e para Deus. Penso nisso!

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  5. Ótimo texto. Muito bom para reflexão sobre o tema. Todavia, humildimente ouso discordar de um ponto: a laicidade do Estado é justamente a não intervenção numa manifestação à religião seguida por este ou aquele tribunal/magistrado. Porém, se o magistrado não for imparcial em virtude de sua crença, então, meu caro, não serve para esta profissão.

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    1. Oi Ivan, suponho (e suspeito) que a intervenção judicial tenta corrigir uma situação que -sob meu ponto de vista e deles- não se justifica.

      Abraço.

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  6. Este blogue precisa mudar urgentemente de título: blog do Ateísmo, no lugar de Blog de Ciência. O que mais se vê por aqui não são textos científicos, mas textos extraídos da cartilha do Ateísmo militante. Ateísmo é ideologia como qualquer outra, não ciência.
    Eu até concordaria com o texto, mas não vindo de um movimento que, mais que "igualdade entre as religiões, prega um sentimento anti-religioso: este é o motivo da implicância com a cruz, não de uma defesa da liberdade religiosa.
    Estado laico não Estado hostil à religião, mas é neutro (e não ateu, que não é de maneira alguma sinônimo de neutralidade) justamente para garantir a liberdade religiosa.
    Só para concluir, o Tribunal de Direitos Humanos Europeu, um dos mais respeitados do mundo, disse, em uma de suas decisões, que a cruz em local público não fere a liberdade religiosa.

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    1. Como o nome do blog indica, trata-se de "um espaço para a cultura científica", e não apenas para a pesquisa científica que realizamos no laboratório. A cultura da ciência incorpora também a discussão e o debate sobre duas formas -acredito eu- antagônicas de ver o mundo: a forma questionadora que a ciência proporciona, e formas fundamentalistas que predominam em muitas religiões.
      Abraço.

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