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terça-feira, 15 de maio de 2012

Esquecendo a droga

MARIANNE WILLIAMS PHOTOGRAPHY/GETTY IMAGES
Como comentamos em nossa última coluna, um dos problemas enfrentados na reabilitação de viciados é que uma vez que eles abandonam os centros de recuperação o contato com o ambiente e a parafernália associada ao consumo – seringas, cigarros, garrafas, colheres e outros objetos – trás de novo a lembrança do prazer que a droga proporciona e isso leva a recaídas. Seria possível mudar essa lembrança? De acordo com um artigo recém-publicado na revista Science, sim.

Para entender a base desta descoberta devemos recuar aos trabalhos do cientista russo Ivan Pavlov e seus experimentos sobre reflexos condicionados na década de 1920. Pavlov tinha criado um dispositivo capaz de medir a salivação em cães. Ele observou que esta aumentava quando o tratador servia a ração, mas também percebeu que depois de um tempo a simples visualização do tratador, mesmo sem oferecer ração, já provocava um aumento na quantidade de saliva produzida pelo animal.

Pavlov suspeitou que os animais tinham aprendido a associar a imagem do tratador com a alimentação, o que gerava a salivação por ação reflexa. Para testar essa hipótese começou a tocar um sino cada vez que era oferecida ração aos animais. Depois de um tempo e como já era esperado, ao apenas ouvir o sino os animais começavam a salivar.

Pavlov também verificou que se depois dos cães terem feito essa associação (sino / ração) ele tocasse o sino sem oferecer o alimento, após algumas repetições o reflexo de salivação cessava, processo que denominou “extinção”.

Boa parte dos tratamentos para viciados baseiam-se nesse princípio de extinção. Na clínica são colocados ao seu alcance todos os elementos relacionados com seu vício, mas sem oferecer a droga de forma que a lembrança do prazer associado aos objetos vai desaparecendo (ou extinguindo). O problema é que embora esse tipo de terapia funcione na clínica, quando o paciente retorna para casa “limpo” as recaídas são frequentes.

Neste novo estudo, os cientistas descobriram que o processo de extinção poderia ser mais efetivo se fosse associado à modificação prévia da lembrança da droga.

Os pesquisadores trabalharam sobre dois processos já bem conhecidos, o de consolidação e reconsolidação da memória. Consolidação é o mecanismo mediante o qual novas informações são armazenadas na memória de longa duração. Para que isso ocorra a nova informação deve ser “avaliada” por uma estrutura cerebral denominada hipocampo. Uma lesão no hipocampo impede que o paciente crie novas memórias embora continue a lembrar de tudo que ocorreu antes da lesão, algo semelhante ao que acontece no filme “Como se fosse a primeira vez”.


Em vermelho, o hipocampo, estrutura fundamental para a formação de novas memórias.



Já no processo de reconsolidação a memória armazenada é trazida novamente à esfera consciente (recordação), mas quando o fazemos a lembrança fica instável, momento onde ela pode ser manipulada e alterada. É como se tirássemos um texto da gaveta, o modificássemos e depois o guardássemos novamente.

É essa a possibilidade que foi explorada no novo estudo. Nele participaram 66 viciados em heroína. Antes da costumeira terapia da extinção os pacientes foram divididos em três grupos. Dois deles foram expostos a vídeos de cinco minutos mostrando cenas com a injeção ou inalação de heroína, ou filmes sobre assuntos neutros como imagens da natureza (grupos controle). Dez minutos ou seis horas depois dos filmes, todos participaram dos procedimentos de extinção habituais.

Os pesquisadores observaram que a terapia de extinção era agora mais efetiva já que antes dela ser executada a lembrança da droga tinha sido previamente trazida para a esfera consciente mediante os filmes, ficando quimicamente instável e passível de ser alterada posteriormente. Os melhores resultados ocorreram justamente no grupo de 10 minutos, quando a recordação ainda estava fresca.

Embora ainda muita pesquisa seja necessária os resultados abrem uma perspectiva auspiciosa no tratamento do vício. Pesquisadores já tinham tentado manipular a memória utilizando ferramentas farmacológicas. É possível fazê-lo, mas os aspectos éticos destes procedimentos impedem que esse tipo de medicação seja usado em humanos. Este novo tratamento de manipulação comportamental da memória é mais palatável desde o ponto de vista ético, gera resultados por até 180 dias, e em tese poderia ser repetido sem grandes prejuízos para o paciente.

Mas uma pergunta fica no ar. Se cada vez que recordamos algo esse “algo” é modificado, quão a sério podemos levar nossas lembranças?





Fonte: A Memory Retrieval-Extinction Procedure to Prevent Drug Craving and Relapse. Yan-Xue Xue e cols., Science 13 April 2012: Vol. 336 no. 6078 pp. 241-245

3 comentários:

  1. Parabéns pelo seu belíssimo trabalho, pelo blog incrível! Sou sua fã rsrs.

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  2. Obrigado Maria Tereza por estar sempre incentivando. Na realidade, a ciência que é fascinante, e isso facilita muito nosso trabalho.
    Abraço!

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