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sexta-feira, 15 de março de 2013

Religiosidade, espiritualidade e ciência


Para aqueles que se preocupam com a laicidade do Estado, estes dias têm sido perturbadores. Apesar da separação constitucional, grupos religiosos avançam aceleradamente sobre a coisa pública não poupando nenhum dos três poderes. Desta vez chegamos ao paradoxo de um deputado/pastor, mediante as costumeiras armações político partidárias, ter sido eleito presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara. O fato não é absurdo por se tratar de um pastor, é absurdo porque como cidadão expressou reiteradamente opiniões de cunho homofóbico e racista, amparado numa visão literal da bíblia. Sua eleição para presidir uma comissão como essa, que entre outras coisas deveria zelar pelo respeito constitucional justamente aos grupos que ele ostensivamente desmerece, me fez lembrar a imagem da raposa tomando conta do galinheiro.

O avanço religioso na esfera política não é, entretanto, um problema apenas observado no Brasil. Se bem no Japão e Europa a influência religiosa é cada vez menor na medida em que se caminha em direção à secularização do estado, nos Estados Unidos grupos religiosos se organizam para impor a toda a população uma agenda anticientífica e conservadora - algo muito semelhante ao que ocorre no Brasil- que deveria ser optativa apenas para os fieis seguidores desta ou aquela denominação religiosa.

Interessados em entender esse fenômeno, pesquisadores da Universidade de Toronto (Canadá) realizaram um estudo tentando correlacionar os conceitos de religiosidade (entendida aqui como a prática religiosa associada a instituições bem estabelecidas e sustentada em rígidos sistemas de crenças, com um incondicional respeito à tradição e à autoridade) e espiritualidade (prática associada com uma experiência individual subjetiva do sagrado e com limites entre o indivíduo e o mundo menos rigidamente definidos), com comportamentos considerados de direita (conservadores) ou de esquerda (liberais).

O estudo foi realizado numa amostra de mais de 1200 indivíduos, canadenses e estadunidenses, onde mediante questionários padronizados foi possível identificar sua posição religiosa, perfil psicológico e opção política.

Os autores observaram que quanto mais forte o nível de religiosidade, maior o conservadorismo e apoio a ideologias do tipo “nós contra eles”. Já aqueles com um perfil “espiritualizado” demonstraram tendências liberalizantes, provavelmente devido a uma visão mais abrangente da sua posição no mundo e sua conexão com ele.

A segunda parte do experimento tentou verificar se experiências espirituais poderiam de alguma forma reverter posturas mais conservadoras e menos igualitárias. Para isto, os participantes realizaram um exercício guiado de meditação, mediante a visualização de um vídeo de quatro minutos onde foi solicitado que fechassem os olhos, respirassem profundamente e se imaginassem conectados a um ambiente natural. Posteriormente responderam um questionário que avaliou suas atitudes políticas. O grupo controle respondeu o mesmo questionário sem o exercício meditativo.

Os resultados mostraram que os participantes da meditação apresentaram uma postura bem mais liberal e solidária que os participantes do grupo controle, mesmo aqueles que inicialmente tinham mostrado um perfil religioso/conservador.

O estudo dá alguns indícios importantes sobre como a incorporação pouco crítica de conceitos religiosos, fenômeno que se observa naqueles que possuem uma visão literal dos livros sagrados e que parece ser o caso do pastor/deputado- leva a posturas políticas conservadoras e intolerantes. Estudos anteriores já tinham evidenciado que a consolidação (priming) de conceitos religiosos poderia aumentar prejuízos raciais, o que está também associado com o conservadorismo político.

Ao mesmo tempo, o estudo oferece indícios sobre como experiências cognitivas específicas, como a meditação, podem ser capazes de alterar padrões comportamentais já bastante arraigados. De fato, a mudança para uma postura mais liberal apresentada pelos voluntários religiosos/conservadores após a realização da prática meditativa indica que, quem sabe, possa existir uma luz no fim do túnel da intolerância religiosa.

Resta saber se os intolerantes estão dispostos a seguir esse caminho.


Fonte: Spiritual Liberals and Religious Conservatives. Hirsh, JB e cols; Social Psychological and Personality Science; 4: 14, 2013




Apenas uma observação que não coube na versão impressa. No texto original do artigo citado nesta postagem, os autores mencionam esta definição de “espiritualidade”...


“... Conversely, spirituality is associated with the experience of self-transcendence described in mystical traditions, where the boundaries between the self and the world become less rigidly defined (Hood, 1975; Spilka, Hood, Hunsberger, & Gorsuch, 2003).”

Assim, de acordo com os autores citados, o conceito de espiritualidade está atrelado a uma visão mística da realidade. Discordo, e o faço colocando aqui um trecho do grande Carl:



" “Espírito” vem da palavra latina que significa “respirar”. O que respiramos é o ar, que é certamente matéria, por mais fina que seja. Apesar do uso em contrário, não há na palavra “espiritual” nenhuma inferência necessária de que estamos falando de algo que não seja matéria (inclusive aquela de que é feito o cérebro), ou de algo que esteja fora do domínio da ciência. De vez em quando, sinto-me livre para empregar a palavra.

A ciência não é só compatível com a espiritualidade; é uma profunda fonte de espiritualidade. Quando reconhecemos nosso lugar na imensidão de anos-luz e no transcorrer das eras, quando compreendemos a complexidade, a beleza e a sutileza da vida, então o sentimento sublime, misto de júbilo e humildade, é certamente espiritual. Como também são espirituais as nossas emoções diante da grande arte, música ou literatura, ou de atos de coragem altruísta exemplar como os de Mahatma Gandhi ou Martin Luther King.

A noção de que a ciência e a espiritualidade são de alguma maneira mutuamente exclusivas presta um desserviço a ambas."


Carl Sagan, O mundo assombrado pelos demônios.








(Se precisar, ative a legenda. Vale a pena.)
MP3 available at http://www.symphonyofscience.com
"We Are All Connected" was made from sampling Carl Sagan's Cosmos, The History Channel's Universe series, Richard Feynman's 1983 interviews, Neil deGrasse Tyson's cosmic sermon, and Bill Nye's Eyes of Nye Series, plus added visuals from The Elegant Universe (NOVA), Stephen Hawking's Universe, Cosmos, the Powers of 10, and more. It is a tribute to great minds of science, intended to spread scientific knowledge and philosophy through the medium of music.



3 comentários:

  1. Muito bom o texto, mas a consideração final é meio estranha. Obviamente que a palavra original vai ser totalmente literal a um termo físico. Praticamente todas as palavras utilizadas com cunho espiritual são descendentes de termos físicos. Sem contar palavras que são adaptadas para usos mentais, como Sigmund Freud e Carl Jung o fizeram.

    Ou seja, a consideração final não se aplica, já que, por exemplo, a palavra energia deriva do Grego ENERGEIA, “operação, atividade”, de ENERGOS, “ativo, trabalhador”, formada por EN, “em”, + ERGON, “trabalho, ação”. Energia não nenhuma relação com elétrons, ou seja, a palavra foi adaptada.

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    1. Oi Thiery, suponho que vc se refere ao texto do Carl. Eu tenho que concordar com ele. Sinto também algo muito espiritual na concepção do universo que a ciência proporciona. Acho que Einstein ia pelo mesmo caminho "Se há algo em mim que pode ser chamado religioso é a ilimitada admiração pela estrutura do universo até onde nossa ciência pode revelá-la.”. Mesmo que a palavra "espírito" tenha sido adaptada, me parece válido lembrar que o significado real não remete a a aspectos místicos. Mas isso é apenas um detalhe.
      Abraço e obrigado pelos comentários.

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