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sábado, 24 de dezembro de 2011

O natal dos ateus

Lá na minha terra natal, bem ao sul, o natal não se chama natal. Oficialmente é o dia da família. Sendo o dia da família, a comilança, a troca de presentes e as reuniões familiares fazem bastante sentido. Não existe semana santa e sim semana de turismo; 12 de outubro não é o aniversário de nenhuma santa e sim o dia das Américas em homenagem à chegada de Cristóvão Colombo e suas caravelas, e seis de janeiro - dia dos reis magos por aqui - é apenas o dia das crianças.

Lá o conceito de laicidade é levado a sério já faz muitas décadas e faz parte da política do estado desde 1919 com apoio de todos os partidos e de toda a sociedade. Em 1907 já tinha sido suprimida toda referência a Deus ou aos Evangelhos no juramento dos parlamentares e no mesmo ano era oficializado o divórcio por vontade única da mulher. Um acordo como o que o Lula assinou com o Vaticano, oficializando o ensino religioso nas escolas públicas seria inadmissível. Legalmente inadmissível desde 1877.

Isto nunca impediu as atividades religiosas, apenas as levou à esfera privada. Fui católico até a adolescência e minha infância em terras uruguaias foi feita sim de “navidades”, com missa do galo e presépio. As lembranças são mesmo muito boas.

O natal é importante para todos nós, mesmo para os ateus que, como eu, se criaram em meio a tradições cristãs. Não acredito num Jesus ressuscitado, mas levo a sério a mensagem que o natal carrega: paz na Terra aos homens de boa vontade. Assim, o espírito do natal transcende a fé e não deveria ser patrimônio de nenhuma religião. Todos devemos contribuir para a construção de um mundo mais fraterno, justo e tolerante. Não apenas no natal, mas sempre.

Neste espírito universal de confraternização as visões excludentes não deveriam ter lugar. Frases como “Só Jesus salva” ou como a que li dias atrás nesta Folha “Sem a passagem de Jesus a raça humana seguiria em progressiva decadência” servem mais para afastar as pessoas que uni-las em um mesmo ideal solidário. De acordo com as estatísticas, o nascimento, vida e mensagem de Jesus são irrelevantes ou mesmo desconhecidas para aproximadamente 70% da população mundial. Esses não se salvam? São eles produto da “progressiva decadência”? Como reagiriam os cristãos a frases como “Só Oxum salva” ou “Sem a passagem de Maomé a raça humana seguiria em progressiva decadência”? Provavelmente ficariam ofendidos. Então, para que ofender os outros? Prever e sentir o que os outros sentiriam caso fizéssemos ou disséssemos alguma coisa é um mecanismo natural, base da empatia, que devemos sempre exercitar. Ateus e crentes.

Sempre pensei em um texto que nestas festas permitisse uma reflexão sobre a necessidade de aproximar as pessoas em vez de afastá-las. Que respeitasse todos os credos, diferenças e opções. E sempre me vem à cabeça um decálogo compilado por Richard Dawkins com o intuito de substituir a dureza draconiana dos mandamentos bíblicos. Já o publiquei anteriormente, mas vale a pena trazê-lo de volta:

1- Não faça aos outros o que não quer que façam com você;

2- Em todas as coisas, faça de tudo para não provocar o mal;

3- Trate os outros seres humanos, as outras criaturas e o mundo em geral com amor, honestidade, fidelidade e respeito;

4- Não ignore o mal nem evite administrar a justiça, mas sempre esteja disposto a perdoar erros que tenham sido reconhecidos por livre e espontânea vontade e lamentados com honestidade;

5- Viva a vida com um sentimento de alegria e deslumbramento;

6- Sempre tente aprender algo de novo;

7- Ponha todas as coisas à prova; sempre compare suas ideias com os fatos, e esteja disposto a descartar mesmo a crença mais cara se ela não se adequar a eles;

8- Jamais se autocensure ou fuja da dissidência; sempre respeite o direito dos outros de discordar de você;

9- Crie opiniões independentes com base em seu próprio raciocínio e em sua experiência; não se permita ser dirigido pelos outros;

10- Questione tudo.

Este decálogo parece reunir o melhor do pensamento religioso junto com a visão humanista e questionadora que a cultura da ciência proporciona. Ninguém precisa abrir mão da sua fé para adotá-lo, nem impô-lo aos demais. E dentro do mesmo espírito de respeito e tolerância, cada um de nós pode acrescentar alguma coisa que nos resulte importante.

Para finalizar, a saúde da humanidade e do planeta onde ela vive depende da compreensão de sermos um único clã de sete bilhões, navegando num pálido e insignificante ponto azul num canto qualquer de um universo incompreensivelmente vasto. Temos que nos ajudar. Ninguém virá nos salvar a não ser nós mesmos.

Bom natal, ou bom dia da família, tanto faz, um abraço fraterno e até 2012  2014 2016!





Fonte: El fenómeno de la laicidad como elemento identitario. El caso uruguayo. Néstor da Costa.
Civitas - Revista de Ciências Sociais, Vol. 11, No 2 (2011), http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/civitas/article/view/9645

20 comentários:

  1. Parabéns pelo texto. Alguma vezes, ao ler textos de autores que se definem ateus, tenho a impressão de encontrar os bons cristãos. Perde-se apenas os excessos impostos por homens que se acreditam ser semi-deuses! Muita pa! Aydênia

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  2. Maravilho o texto. Descreve sabiamente a divergencia de ideologias. O decálogo por Richard Dawkins contem principios verdadeiros.

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  3. Otimo texto, porem, nos sabemos bem q do opnto 7 em diante, religiosos tem uma barreira a este tipo de pensamento.

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  4. Seu texto me arrebatou... Você é um gênio! Bom dia da família prá vc tb!

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  5. Obrigado a todos pelos comentários. Reitero meu abraço fraterno. Um bom 2012 para todos nós!

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  6. Bom texto cara..Como lutar por um estado laico?

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  7. Obrigado Claudio. Não é fácil. Nossa própria Constituição é confusa. Ela é "promulgada sob a proteção de Deus". Além do mais, ela tem artigos como este: "§ 1º - O ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental.". Por outra parte:
    "Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

    I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público;"

    Então, não pode subvencionar mas vai pagar salário para professor de religião? O Conselho Nacional de Educação está recorrendo neste momento no STF contra esta obrigatoriedade do ensino religioso, como pode ser lido aqui http://www.advivo.com.br/blog/luisnassif/cne-debate-a-questao-do-ensino-religioso

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  8. Visto que o natal original é uma celebração pagã, com rituais da fertilidade em torno de uma árvore, que os cristãos incorporaram, não há com o que se preocupar, pode chamar o natal de natal mesmo na sua terra!

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  9. Um texto que eu gostaria de ter escrito. Humanista e científico, o autor mete em relevo a necessidade de união dos seres humanos, face aos conflitos absurdos. Somos de fato uma nave espacial frágil que viaja pelo universo. Só a união, a busca comum, a solidariedade nos podem salvar... Nunca os deuses !

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  10. Gostei do texto!
    Augusto Ferreira.

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  11. Sabe qual a diferença de um Ateu e um cachorro ? A diferença é que o cachorro conhece seu dono. Veja o que representa a sociedade que a grande maioria crer em DEUS e em Jesus Cristo. Ou seja: O que pensam os ateus sobre nos? Na verdade somos um povo besta, um povo que cre em Deus, que vai a igreja, que lê a bíblia, recebemos milagres etc... é nítido que o as Ateus demonstram um certo Orgulho em dizer ser mais um ateu. Acontece que contrariar toda a bíblia desde genesi a apocalipse, pessoas que viveram em épocas direntes, falando a mesma coisa, a continuação da histórias e dos fatos. é mais dificil ser um Ateu do que crer em Deus. é vergonhoso saber que a criatura de Deus, entende que DEUS ão existe. O Grande Trono Branco escrito no livro de Apocalipse 20, vai acontecer um dia e JESUS será o juiz! Este dia será uma vergonha para estes ateus, descrentes etc. bay: Oscar de Oliveira

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    1. "Sabe qual a diferença de um Ateu e um cachorro ? A diferença é que o cachorro conhece seu dono."
      Oscar de Oliveira, de certa forma, teu texto confirma o meu.

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    2. E você sabe qual a diferença entre cristãos e ateus??? É que o cristão faz o bem por temer Deus e por esperar ser escolhido, já o ateu faz o bem sem esperar nada em troca...Se Deus existir e não escolher o ateu apenas pela sua falta de crença, convenhamos, Ele será tudo menos justo...O maior problema que Vejo nas religiões é a intolerância... Deuses existem desde o início da humanidade, então porque o Deus escolhido por você e pela sua religião tem que ser o verdadeiro Deus???

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    3. E você sabe qual a diferença entre cristão e ateu??? É que cristão faz o bem por temer Deus e para ser escolhido,já o ateu faz o bem sem esperar nada em troca...Se Deus existir e não escolher um ateu apenas pela sua falta de crença, convenhamos,Ele pode ser tudo, menos justo...O maior problema que Vejo nas religiões é a intolerância... deuses existem desde o início da humanidade e porque o Deus escolhido por você e por sua religião tem que ser o verdadeiro Deus???

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  12. Parabéns professor. Nunca tinha lido o texto de um ateu, me surpreendeu. Pode ser que faltem ateus com este decálogo em mente no mundo. Tudo de melhor. Abraço

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  13. É verdade, enquanto ficamos em guerrinhas de sempre, o clima tá mudando e o resultado é duradouro, os fantasmas extintos no Permiano que o digam.

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  14. Cresci num ambiente religioso e me sentia oprimido, quando me descobri ateu me senti liberto.

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  15. nao sou ateu mais texto legal pegou a exencia

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