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sábado, 10 de dezembro de 2011

O corpo ficou pequeno

Não é apenas o grande negócio do futebol quem aguarda com expectativa o início da próxima copa do mundo. A comunidade científica também.

Se as coisas correrem como o neurocientista brasileiro Miguel Nicolelis prevê, o pontapé inicial será dado por dois adolescentes tetraplégicos vestindo um exoesqueleto, uma veste robótica controlada por seus próprios pensamentos. O projeto é para lá de ambicioso, mas Nicolelis e outros cientistas já percorreram um bom caminho numa linha de investigação que mais se assemelha a uma história de ficção científica: liberar o cérebro (e a mente que ele produz) das barreiras do nosso corpo carnal. Nessa mesma linha, mas com uma abordagem diferente, pesquisadores já tinham produzido “experiências fora do corpo” (EFCs) em laboratório, estimulando áreas específicas do córtex cerebral.

A ideia, por trás disso tudo, é que nosso corpo, embora seja uma construção evolutiva extraordinária, muitas vezes nos falha. Traumatismos e doenças podem mutilá-lo ou diminuir drasticamente sua capacidade. Envelhece inexoravelmente e bem mais rápido que o que nosso cérebro desejaria. Não nos permite estar em dois lugares ao mesmo tempo, e para transportá-lo gastamos tempo, energia e dinheiro. Não é assim tão rápido nem tão forte quanto algumas vezes desejaríamos que fosse. Mas por enquanto ele á a melhor interface mediante a qual nosso cérebro interage com o meio externo. E mais, pelo que descobrimos até agora, nossa atividade mental - pensamentos, sentimentos, percepções, lembranças, emoções, desejos, etc.-, tal como a conhecemos só é possível com uma constante interação cérebro-corpo.

Mas seja para aliviar o sofrimento daqueles que têm uma mente enclausurada em um corpo que não mais responde, seja para ampliar as fronteiras do conhecimento, grupos de pesquisadores decidiram que já está mais do que na hora desse limite ser desafiado.

Como nossa consciência pode abandonar o corpo físico e realizar esses fenômenos? Como ela movimenta um braço mecânico? Como produz uma EFC? Não estaria a ciência comprovando a existência de uma alma ou espírito imaterial? A volta do velho dualismo cartesiano? Não. Não há nada de sobrenatural nestas tentativas. Vejamos, por exemplo, a abordagem de Nicolelis.

Quando acidentalmente perdemos um membro ou, o que costuma ser pior, quando ocorre uma lesão na medula espinal que deixa o paciente para ou tetraplégico, a ordem que parte do cérebro para movimentar o corpo não atinge o alvo, seja porque o alvo não mais existe como no caso da amputação, seja porque os fios (nervos) que conectam o cérebro aos músculos foram seccionados (lesão medular). Mas a ordem para movimentar o braço ainda está sendo emitida por uma parte específica do córtex cerebral. A ideia então é captar esse estímulo (um potencial elétrico da ordem de milivolts), amplificá-lo e transformá-lo numa corrente elétrica capaz de movimentar uma peça mecânica. Esta peça pode estar acoplada a um exoesqueleto que envolve o corpo do paciente, mas pode estar a milhares de quilômetros de distância. 



A ideia em si é simples, porém os detalhes na sua execução e a quantidade de desafios biológicos e técnicos que devem ser enfrentados são tantos que, comparativamente, o resultado final da copa do mundo é algo absolutamente insignificante. 

Movimentar esse exoesqueleto é, entretanto, apenas parte do desafio. Quando seccionamos a medula ou amputamos um braço não apenas os nervos que levam ordens desde o cérebro para os músculos são seccionados. Os que levam sensações desde a pele para o cérebro também. Assim, a única forma de o paciente sentir o braço robótico como seu é conseguindo que a sensação de toque e movimento do membro artificial chegue ao cérebro como antes acontecia com o membro natural. Recuperar esta segunda via é bem mais complicado, mas o grupo de Nicolelis já conseguiu resultados promissores em macacos.

Sobre as EFCs já comentamos anteriormente. Desde 2006 o grupo liderado pelo pesquisador Olaf Blanke – entre outros – vem idealizando formas de provocar a projeção do “eu” ou “self” além dos limites do corpo físico. Inicialmente isto foi conseguido estimulando uma região cerebral, o giro angular, responsável pela formação de nossa imagem corporal. Posteriormente criando uma dissociação entre a informação visual e a informação tátil de partes específicas do corpo, utilizando realidade virtual. Mediante esses truques tecnológicos o cérebro é “enganado” e forma nossa imagem corporal fora do nosso corpo real. Para os pesquisadores, o próximo passo é incorporar o “self projetado” em avatares localizados em ambientes virtuais. Um ambiente onde os limites de tempo e espaço não existem. 


Se tudo isto for conseguido, em breve teremos que rever os conceitos que definem o que somos e o que nos torna humanos. Enquanto isso, vamos torcer para que Miguel Nicolelis e sua equipe tenham êxito. Milhares de pacientes aguardam com esperança.

2 comentários:

  1. Olá Roelf!
    Sinceramente me surpreendeu a história do que pode ser a estréia da copa de 2014 ! Ela é um incentivo para pesquisadores no Brasil mas oculta uma realidade bem chata que vc conhece. Vamos torcer e agir para que tal realidade de baixíssimos investimentos na produção científica mude para melhor!

    Parabéns pelo artigo!

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  2. Oi HFC, obrigado (e você está certo). Pessoalmente, acho que o desafio do Nicolelis é, no mínimo, ousado. Boa parte desse ambicioso projeto (The Walk Again Project), é uma parceria entre instituições dos EUA (Duke University), Lausanne (Suíça), Berlim, Munique (ambas na Alemanha), Natal e São Paulo.
    Abraço!

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