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sábado, 16 de abril de 2011

Homofobia. De onde vem? Para onde vai?


Se um homem dormir com outro, como se fosse com mulher, ambos cometem uma abominação e serão punidos com a morte: seu sangue cairá sobre eles.
(Levíticos 20:13)


Temos um cérebro moral. Pelo que sabemos até agora, possuímos redes neurais que participam em decisões e julgamentos morais. Descobrimos isso, em parte, através do estudo de casos clínicos, onde pacientes com lesões em áreas específicas do cérebro passaram a ter um comportamento social alterado.

Já escrevemos nesta coluna sobre alguns desses casos, antigos como o de Phineas Gage e modernos como os descritos pelo neurocientista Antônio Damásio. Também comentamos os experimentos onde com o uso de imãs gerando campos magnéticos sobre áreas específicas do córtex cerebral foram produzidas alterações temporárias em determinados julgamentos morais.

Há anos a neurociência está interessada em saber como essas redes neurais “morais” se formam. Já nascemos com elas ou são criadas pelo convívio em sociedade? As evidências indicam um pouco das duas possibilidades. Os genes gerariam o circuito cerebral básico que nos leva a sentir prazer quando fazemos coisas que nosso grupo considera positivas, e emoções negativas quando realizamos ações nocivas a nós mesmos ou ao grupo ao qual pertencemos.

Mas aquilo que nosso grupo considera positivo muda com o tempo e o lugar, assim nosso cérebro tem que ser permeável às normas que regem o grupo, e plástico para alterar suas conexões quando necessário. O aparamento final das redes neurais “morais” parece assim depender da cultura onde o indivíduo cresce e se desenvolve.

Dois mil anos atrás, as normas morais que asseguravam o convívio do grupo eram muito diferentes que as que temos hoje. Boa parte dessa mudança ocorreu devido a um maior conhecimento sobre o universo e sobre nós mesmos. A ciência contribuiu muito nesse processo. Uma compreensão maior sobre nosso modesto lugar no cosmos, sobre a sutileza da vida, sobre nossa base biológica comum com todos os seres vivos nos fez compreender que somos parte de um mesmo grupo (Homo sapiens), sem povos escolhidos nem raças superiores. Nos fez também entender que existe uma base neural para nossas diferenças individuais, o que nos permite aceitar e respeitar diversos comportamentos e opções.

É evidente que este novo mundo que nasce do conhecimento se choca frontalmente com versículos como os colocados no inicio deste artigo.

Não poderia ser de outra forma. Dois mil anos atrás a intolerância não apenas era regra como representava uma característica necessária. A explicação desse comportamento deve ser buscada nos mecanismos da evolução humana.

Estudos antropológicos indicam que o Homo sapiens evoluiu a partir de pequenos grupos de caçadores/coletores nas savanas africanas (sim, somos todos afrodescendentes).

A sobrevivência individual dependia de um comportamento solidário e altruísta entre os membros do grupo, mas hostil com os membros de outros grupos. A seleção natural se encarregou de fixar profundamente esse tipo de comportamento em nosso cérebro, e ele persiste até hoje. Como resultado, temos uma tendência a mostrar hostilidade com o diferente.

Quando não nos policiamos, ou quando aceitamos que o padrão que rege nossa conduta seja o que consta em livros religiosos escritos há mais de 1500 anos, esse comportamento intolerante ressurge.

Assim, quando o deputado federal Jair Bolsonaro ou qualquer outro se mostra hostil e intolerante em relação aos homossexuais usando argumentos bíblicos, está sendo apenas coerente com a religião que professa.

Até agora nenhuma autoridade religiosa veio oficialmente a público para condenar ou descartar qualquer uma dessas passagens bíblicas onde a intolerância se faz tão patente, como é o caso do versículo acima. Não há jogo de cintura que permita dar outra interpretação ou amenizar o que está aí escrito. O que o deputado faz é nos lembrar que a “palavra” do deus bíblico judaico/cristão/islâmico é essa mesma, nascida de tempos intolerantes, e quando aparece em toda sua crueza choca nosso cérebro do século 21. Um conflito inevitável.

Como espécie, a luta contra o comportamento intolerante que carregamos depende basicamente da educação que oferecemos aos nossos filhos. Sociedades (escolas) e indivíduos (pais) têm a chance de direcionar esses novos cidadãos para uma sociedade mais fraterna. A educação científica que permite -entre outras coisas- compreender nossa herança evolutiva pode contribuir muito para isso.

E enquanto as religiões continuem a exercer o poder que exercem sobre a população, seria muito sábio que os livros sagrados, que dizem conter a palavra dos deuses, se livrassem de toda e qualquer referência que nos leve ao sectarismo, violência, e intolerância. Dar argumentos para sociopatas não é mesmo uma boa ideia.

2 comentários:

  1. "Tratai todos os homens como quereríeis que eles vos tratassem." S. Lucas, 6:31

    Professor, não estaria contido neste trecho uma íntima relação entre o relatado pelo senhor sobre os estudos dos neurônios-espelho com a sabedoria messiânica do livro de 2 mil anos de idade?

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  2. Oi Fábio.
    Sim. Aliás, os textos sagrados das religiões do deserto possuem várias passagens admiráveis (muitas provém da filosofia grega), que convivem com passagens horrendas.
    É a isso que me refiro no último parágrafo.

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