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sábado, 1 de outubro de 2011

Evolução e preconceito

O comediante norte-americano Michael Richards ficou famoso nos anos 90 ao interpretar o personagem Cosmo Kramer, no seriado Seinfeld, seriado cujas reprises fazem sucesso até os dias de hoje. Tempos atrás Richards voltou à fama, desta vez de forma bastante negativa. Hostilizado durante um show (alguém comentou "você não é engraçado" ou coisa parecida), Richards partiu para a agressão verbal, utilizando um vasto repertório de insultos racistas e carregados de preconceito contra os provocadores (dois indivíduos negros). Dias depois, visivelmente arrependido pela sua atitude, Richards pediu desculpas publicamente. "O mais insano neste episódio é que eu não sou racista", declarou o ator.

Mas, como pode não ser racista quem, ao se descontrolar, apresenta um discurso tão preconceituoso? A resposta parece estar na diferença entre nossas atitudes conscientes e inconscientes. Entre nossos posicionamentos públicos e nossos pensamentos privados.

Consciente e publicamente, Richards não é racista. Inconscientemente, todos somos. Duvida? Visite então este site da Universidade de Harvard: https://implicit.harvard.edu/implicit/. Clique na bandeirinha de Brasil e faça o teste. Trata-se do Teste de Associação Implícita, ou TAI. Resumidamente, ele analisa o tempo que gastamos na associação de rostos de pessoas negras ou brancas, gordas ou magras, jovens ou velhas, com conceitos como bom, ruim, maravilhoso, dor, etc.

Eu fiz o teste. Sempre me considerei uma pessoa nada racista. Tolerante. Acho que meus amigos também pensam isso sobre mim. Entretanto, para minha surpresa e espanto, o resultado do meu teste foi: "Os seus dados sugerem uma forte preferência automática por Pessoas Brancas em comparação com Pessoas Negras." Como pode? Minha primeira reação foi duvidar dos psicólogos que elaboraram o teste, mas ao analisar o currículo dos mesmos percebi a seriedade e idoneidade científica da equipe. Saber que pessoas mais comprometidas com a luta contra a discriminação, brancas e negras, tiveram resultados semelhantes aos meus, também não serve de consolo.

Uma das possíveis explicações para esta "preferência automática" pode ser obtida através da análise dos mecanismos da evolução humana. Estudos antropológicos indicam que o Homo sapiens evoluiu a partir de pequenos grupos de caçadores/coletores. A sobrevivência individual dependia de um comportamento solidário e altruísta entre os membros do grupo, mas hostil com os membros de outros grupos. A seleção natural se encarregou de fixar profundamente esse tipo de comportamento em nosso cérebro, e ele persiste até hoje. Hostilidades entre grupos de torcidas organizadas, católicos/não católicos, judeus/ gentios, alunos da FOA/alunos da UNIP, etc., atestam isso. Carregamos as consequências desta evolução. Somos altruístas com os do nosso grupo. Tentamos sê-lo (alguns nem sequer se dão esse trabalho) com os membros do "outro" grupo. Somos solidários, mas somos xenófobos. Somos generosos, mas somos racistas. Nossa cultura intolerante reforça esses traços.

A compreensão desses mecanismos evolutivos é fundamental para poder lutar contra suas consequências negativas. Se bem devemos aceitar a evolução darwiniana como um fato real, devemos também ser conscientes que, socialmente, ela é inaceitável.

Nada melhor que as palavras de um dos maiores biólogos da atualidade, Richard Dawkins, para explicar esse paradoxo:


 "Como cientista acadêmico, sou um darwinista apaixonado, e acredito que a seleção natural é, se não a única força por detrás da evolução, certamente a única força capaz de produzir a ilusão de propósito que emociona os que contemplam a natureza. Mas ao mesmo tempo em que defendo o darwinismo como cientista, sou ardentemente antidarwinista quando se trata de política ou da condução dos negócios humanos."

Quando não temos clareza dessa diferença, acabamos aceitando absurdos como o chamado "darwinismo social", uma pseudociência que não tem nada a ver com o darwinismo e que foi utilizada de forma homicida por Hitler na Alemanha nazista, tentando justificar assim a limpeza étnica contra judeus, ciganos e outras minorias. Mesmo antes de Hitler, eugenistas norte-americanos tentaram fazer coisa parecida nos Estados Unidos sugerindo a adoção de programas de esterilização compulsória dos menos aptos, e favorecendo a imigração de tipos nórdicos - louros e louras de olhos azuis.

Para finalizar, nossa herança evolutiva não pode, é claro, justificar atos como os de Richards, que poderiam ser os atos de qualquer um de nós. Até não tomar consciência que somos um único grupo global, essas associações pejorativas intra-grupos continuarão. Até não conseguir esse objetivo igualitário, nos resta vigiar nosso comportamento e lembrar que a construção de uma cultura de tolerância seria capaz de, se não eliminar, pelo menos diminuir esses vestígios negativos da nossa história evolutiva.



Atualização: este artigo foi publicado originalmente em 2009, mas permanece tão atual quanto naqueles dias. Em minha defesa, repeti o teste esta semana e a coisa foi bem melhor. O resultado final: "Os seus dados sugerem uma leve preferência automática por pessoas brancas em comparação com pessoas negras.". Já é alguma coisa!

Fontes utilizadas: 

Shermer, M., Kramer's Conundrum. What the Michael Richards Event Really Means; e-skeptic, November 2006. Dawkins, R., O capelão do diabo; Companhia das Letras; 2003.

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