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sábado, 18 de fevereiro de 2012

A lenda de Athot, a gravidade e o criacionismo

História 1
Todo dia, pontualmente às 16:00, milhões de mongóis se ajoelham sobre seus tapetes sagrados e olhando em direção ao centro da Terra oram para Athot, a deusa de todas as coisas, da pureza e da perfeição. O reino de Athot (Khann) é separado do mundo impuro (Govi-Altay, tudo o que existe na superfície, no mar e no céu) pelo escudo de Athiai, o Guerreiro (para os mongóis, o escudo de Athiai representa a crosta terrestre). No interior do planeta, Athot vive com os seres encantados, ou afians, todos nascidos da mente de Athot. Contam os livros sagrados que um dos afians, Dundgovi, seduzido pela beleza de Athot tentou tocar os cabelos dourados da deusa. Como castigo, seu corpo foi despedaçado e seus restos jogados no mundo impuro. Os fragmentos de Dundgovi entraram então em cada objeto existente em Govi-Altay, em cada folha, cada pedra, cada lança, cada criatura viva, cada objeto inanimado, natural ou construído pelo homem. Tudo o que podemos ver na superfície da Terra, nos mares e no céu tem em seu âmago algo do espírito de Dundgovi. Mas Dundgovi, arrependido, não quer ficar no mundo impuro da superfície. Cada fragmento do seu espírito quer retornar ao centro da Terra, se desculpar com Athot e pedir que seu corpo volte a ser uno. É por isso que todos os objetos tendem a cair, porque os fragmentos de Dundgovi os empurram em direção a Khann. 


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História 2
A gravidade é uma das quatro forças fundamentais da natureza. Por causa dela objetos com massa exercem atração uns sobre os outros. Classicamente, é descrita pela lei da gravitação universal de Newton. De acordo com Newton, todos os objetos no Universo atraem todos os outros objetos com uma força que é proporcional ao produto das suas massas e inversamente proporcional ao quadrado da distância que os separa. 


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As histórias 1 e 2 explicam, cada uma a sua maneira, por que as coisas caem. Na história 1 o fazem porque fragmentos do espírito de um deus as empurram em direção ao centro da Terra. A história é completamente falsa, claro. Foi inventada por mim. Não existe nenhuma divindade mongol chamada Athot, ou Dundgovi. Mongóis não rezam, suponho, para nenhum deus às quatro da tarde. Tudo foi fruto de 15 minutos de invenção literária.

Já a história 2, extraída da Wikipédia, embora também tenha saído da cabeça de alguém, surge de um trabalhoso processo de observação, análise e experimentação. Por séculos a humanidade tentou explicar por que os objetos caem, por que os planetas e satélites naturais como a lua não se afastam da Terra. Explicações místicas nunca faltaram. Se eu consegui inventar a deusa Athot e seu séquito em 15 minutos, imaginemos o que poderia ser feito com mais tempo, sem TV, e sem muita coisa para fazer.

Felizmente alguns decidiram duvidar de histórias como a minha e testar se essas explicações eram fruto apenas da imaginação ou estavam amparadas por evidências. Se a teoria não podia ser testada (é impossível criar um experimento que negue a existência de qualquer deus, seja este Athot, Zeus ou Jeová), era deixada de lado. Se os experimentos comprovassem que a teoria estava errada, era jogada no lixo. A teoria que sobrevivesse a todos os ataques persistiria. Esse tipo de pensamento originou o método científico. Não precisamos acreditar na teoria gravitacional científica porque Newton era um gênio (embora ele fosse mesmo). Acreditamos porque ela funciona.

Da mesma forma que a gravidade, a origem das espécies – incluindo a origem do homem-, possui explicações místicas e uma explicação científica. As primeiras nascem das dezenas de lendas cosmogônicas que cada religião ao longo da história do homem foi criando, suspeito que de uma forma não muito diferente ao processo mental que me levou a criar a história de Athot. A explicação científica - a teoria da evolução – foi fruto das observações de Darwin e Wallace, testada e aprimorada ao longo de 150 anos de muita pesquisa e trabalho árduo de milhares de cientistas.

Mesmo que a teoria de Athot não fosse minha, mesmo que ela fizesse parte dos mitos de criação de alguma religião, quero acreditar que nenhuma pessoa sensata daria a ela a mesma validade que a teoria gravitacional newtoniana. Salvo em algumas teocracias fieis a Athot, a explicação religiosa para a queda dos objetos jamais competiria com a explicação científica.

Mas ao contrário da gravidade, muitos querem que a explicação mística sobre a origem das espécies tenha a mesma relevância que a explicação científica, e oferecê-la como alternativa em nosso sistema de ensino. 


"O Plano de Deus Para os Ambientes", figura extraída da coleção "Crescer em Sabedoria", apostila elaborada pela Associação Internacional das Escolas Cristãs e usada nos três primeiros anos do ensino fundamental 1 em algumas escolas confessionais do país. 
Claro, muitos dirão, estou comparando uma teoria maluca inventada por mim em alguns minutos de ócio com o Gênesis bíblico. Respeito a crítica, mas discordo. Ensinar a alunos já tão pobremente preparados para enfrentar a Sociedade do Conhecimento que a Terra tem 10.000 anos e não bilhões, que dinossauros e humanos conviveram, que um deus lá no céu em seis dias criou tudo o que existe, que Noé teve seu primeiro filho com 500 anos e morreu com 950, não me parece muito mais sensato que o desejado retorno de Dundgovi ao fantástico reino de Khann.

10 comentários:

  1. BÍBLIA E A MITOLOGIA

    Todos sabem que a bíblia é o livro mais conhecido hoje no mundo ocidental, mas conforme a ordem natural das coisas, ela não se constituiu sozinha e muito menos foi o resultado de inspirações divinas. Aqui tentaremos demonstrar o quão próximo está à mitologia cristã - por conhecidencia ou não - de algumas outras obras, também de cunho mítico.
    O que você lê no ‘livro sagrado’ pode ter sido influenciado por uma estrutura clássica de tradição politeísta e, de acordo com os cristãos mais ortodoxos, de cultura pagã. Tentaremos expor, de forma não cronológica, alguns personagens que se condicionam, em proximidade, nas mesmas histórias:
    1- Comecemos pelo mito mesopotâmico de Gilgamesh, escrito a cerca de 1500 anos antes da compilação homérica e hesíodica grega. Segundo o relato, Gilgamesh percorreu e vivenciou quase as mesmas situações ocorridas com o famoso Noé onde o dilúvio é o ponto alto da narrativa;
    2- Orfeu foi filho da musa Calíope e do deus Apolo, apaixonado por Eurídice, vai até o mundo de Hades (a morte) para resgatá-la de seu infortúnio. Ao encantar, primeiramente, Caronte (o barqueiro que transporta as almas pelo rio Aqueronte) com sua bela música e em seguida o próprio Plutão (ou Hades para os gregos) consegue convencê-lo a deixar que sua amada volte com ele ao mundo dos vivos. O deus concorda, mas com uma condição: que ele não olhasse para ela até que o sol os banhasse com a luz. Preocupado com a segurança de Eurídice, olha rapidamente para trás e, sem intenção, também para ela, transformando-a em um vulto que voltava para a morte. Outra vertente do mesmo mito diz que ela se transforma então em uma estátua de sal. Percebemos a semelhança com a história do sobrinho de Abraão, Ló e sua saída de Sodoma a mando de deus, quem olha para trás já sabe o fim que terá: transformar-se-á em sal;
    3- Anfitrião, pai mortal de Hércules, casado com Acmene, em algum momento da vida enfrenta um inimigo cuja força estava nos cabelos, ao ser cortada a mexa de ouro que o fazia o mais terrível inimigo, Anfitrião o derrota e salva seu povo da tirania do adversário. É o que ocorre também com a lenda de Sansão e Golias;
    4- Prometeu foi um Titã cuja importância esteve em ser o responsável, juntamente com seu irmão Epimeteu, de criar os homens e todos os animais. Ao roubar o fogo sagrado e entregá-lo para os homens, o Titã acaba-os diferenciando dos outros animais, depositando razão em sua alma. Zeus os castigou e condeno-o a ficar acorrentado em uma rocha com os braços abertos em cruz enquanto que todos os dias uma águia vinha comer o seu fígado. O que há de proximidade com a história da morte de Cristo? Em minha opinião a grades semelhanças, uma vez que ele foi condenado por tentar levar a sabedoria divina aos homens sendo crucificado por isso.
    5- Não satisfeito com o castigo imposto a Prometeu, Zeus decide inventar uma nova criatura, uma que conseguisse dominar o espírito do homem e ser a fonte de todo o seu sofrimento. Assim foi concebida Pandora como punição a Epimeteu e aos homens que ajudara a cunhar. Aqui percebemos uma semelhança com Eva. A caixa de Pandora que liberta as coisas ruins no mundo é a mesma da mordida na maçã. As mulheres são, nas duas mitologias, as responsáveis por todo o mal dos homens.
    Como percebemos em algumas dessas mitologias, é possível, visto o tempo de repercussão e concepção de cada conteúdo mítico, que a bíblia tenha sido o fruto de uma readaptação de muitas dessas histórias que são mais antigas do que sua construção.

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    1. "...a bíblia tenha sido o fruto de uma readaptação de muitas dessas histórias que são mais antigas do que sua construção." Parece que foi assim mesmo, tudo misturado com uma popularização de conceitos básicos da filosofia grega.

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  2. Fantástico, muito bem elaborado escrito. Peço permissão para utilizar a lenda de Athot na próxima vez que tentarem me converter, haha.

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    1. Obrigado Lucas. Permissão concedida. E quem não acreditar em Athot será um ateu!!!

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  3. Ótimo texto... Se você se dedicasse daria pra escrever um romance de fantasia interessante sobre Athot, hem? Brincadeiras à parte, parabéns novamente pelo texto, ficou muito bom.

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  4. Sim parece que essa Athot era bem bonita. Já estou começando a acreditar nela. Será assim que começa tudo (rsrs)?
    Abraço.

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  5. Por qual razão o próprio Newton não cogitou uma comparação dessas? Pelo contrário, parece que não perdeu o interesse por assuntos obscuros como a alquimia. provavelmente Newton não tivesse uma mente tão brilhante como possuem alguns militantes do néo-ateísmo.

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    1. Sim, Newton tinha um pé e meio no misticismo. Por isso que ciência é legal. A vida de Newton era pouco relevante no contexto que interessa. Suas crenças idem. Importantes foram suas geniais contribuições científicas. Importantes não por causa do Newton. Importantes porque funcionam. Por isso é que em ciência o critério de autoridade é irrelevante.
      Abç.

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  6. Parabens pelo texto, gostei mesmo

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  7. Interessante e digno de reflexão, ótimo texto professor!

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