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sábado, 17 de setembro de 2011

Você está errado! (e eu também)


Ilusão óptica criada por Edward H. Adelson, 
Professor de Ciências da Visão do MIT (1995). 
O quadrado A é bem mais escuro que o B, certo?
Errado, os dois são da mesma cor. 
Se não acredita, veja ao final deste artigo.
Independente de tudo o que ainda falta por descobrir sobre o funcionamento do cérebro (e não é pouco), o que já sabemos nos aconselha a não confiar demais naquilo que acreditamos ver ou escutar. Não tenha certeza do que você lembra. Duvide dos sentimentos que sua memória gera. Tente apoiar-se em evidências minimamente objetivas antes de tirar uma conclusão.
Nosso cérebro nos engana. Constantemente. A ilusão óptica que ilustra este artigo é um exemplo entre muitos.


Uma das características do nosso cérebro é a de ser um processador subjetivo, o que em parte dificulta criar modelos computacionais satisfatórios. Ao contrário do que acontece com um computador, o resultado final da função cerebral é influenciado por tanta coisa que a entrada do mesmo conjunto de dados geralmente provoca respostas diferentes entre indivíduos, e às vezes no mesmo indivíduo ao longo do dia.

Já faz umas décadas os neurocientistas chegaram à desconcertante conclusão que o mundo percebido é diferente do mundo real. O alcance desta constatação é enorme e se baseia nas diferenças que hoje conhecemos entre os processos de sensação e percepção.

Em nosso corpo temos estruturas especializadas em captar informações do meio externo e interno. Elas estão na pele, vísceras, olhos, orelhas, língua, nariz... Cada uma está relacionada com um dos nossos sentidos. Essas estruturas, denominadas receptores, transformam energias como a luz que atinge nossos olhos, as ondas sonoras, a energia química contida naquilo que cheiramos ou comemos, a energia térmica que vem do sol ou do fogo e alcança nossa pele, a energia mecânica que vem de um beliscão, e muitas outras, na única linguagem que o cérebro entende: pequenas correntes elétricas.

Estas correntes, conhecidas como potencial de ação, chegam ao cérebro através de nervos de uma forma bastante conhecida e padronizada. Simplificando, chamamos esse processo de sensação.

Mas chegando ao cérebro começa outro processo que ainda estamos longe de entender: a transformação dessas pequenas correntes elétricas em conceitos como o vermelho da rosa, o azedo da maçã, o aroma que nos lembra uma pessoa ou situação, a dor de dente, e tantos outros que constituem parte importante da nossa vida consciente.

O que sabemos é que essa transformação (percepção para os neurocientistas) é uma experiência individual. Meu vermelho pode ser diferente do seu (aliás, eu não tenho como saber como é seu vermelho!), a mesma maçã tem gostos diferentes para mim e para você.

Ainda, chegando ao cérebro os potenciais de ação estimulam diferentes áreas, algumas relacionadas com a memória, emoções, etc. Como cada um tem memórias próprias e reage emocionalmente de forma muito individual, a imagem final que o cérebro constrói será o resultado da informação que chegou através dos nervos, mas modificada pelas informações individuais acumuladas. Somos conscientes apenas do resultado final e este dependerá da nossa história de vida, de experiências anteriores, do nosso conhecimento sobre o mundo.

Como se essa fonte de erro e variabilidade fosse pouca coisa, ainda temos o problema das falsas memórias. Boa parte dessas versões da realidade que nosso cérebro cria são, como sabemos, armazenadas na memória. Mas com o passar do tempo as lembranças desvanecem. Peças do quebra-cabeça vão desaparecendo e nosso cérebro as repõe com o que tem à mão. Quanto mais o tempo passa, mais distorcida vai ficando a informação inicial.

Se um rosto desaparece da cena a ser lembrada nosso cérebro poderá colocar outro em seu lugar do estoque de rostos que tem armazenado. Quando a imagem ou lembrança fica incompleta, ele a refaz da forma mais coerente possível. Mas coerência e realidade são coisas diferentes.

Se ouvirmos repetidamente histórias sobre nossa infância, mesmo que inexistentes, criaremos uma imagem visual que poderá se transformar em uma memória tão real quanto qualquer outra.

Jean Piaget, o grande psicólogo e educador, contava que uma de suas lembranças infantis era ter sido sequestrado à idade de dois anos. Ele lembrava detalhes como o rosto machucado da enfermeira tentando se defender do sequestrador, do policial com sua capa branca e seu cassetete perseguindo o bandido. A história fora reforçada pelo relato da enfermeira e da família de Piaget, de forma que ele lembrava perfeitamente do ocorrido. Entretanto, o sequestro nunca aconteceu. Anos depois a enfermeira confessou ter inventado tudo.

Nesse campo das falsas memórias, algumas histórias são terríveis. Memórias podem ser implantadas coletivamente em campanhas publicitárias ou individualmente como no caso de Piaget. Pais foram acusados de abuso sexual por filhos que tiveram suas memórias manipuladas no divã de psicanalistas inescrupulosos. A descoberta posterior do erro não evitou o sofrimento de famílias inteiras.

Se a constatação que o mundo percebido -e lembrado- por nosso cérebro é diferente do mundo real pode ser perturbadora, ela permite que reavaliemos nossas certezas e, fundamentalmente, nossa predisposição negativa em relação aos outros. Mais que a religião, é o conhecimento do cérebro que a ciência oferece quem nos direciona para a tolerância. Saber que os sentimentos negativos que nutrimos podem ser decorrentes de uma série de distorções da informação que nosso cérebro processa pode nos dar chance de reparar uma injustiça e compreender as fraquezas dos nossos iguais. Ao mesmo tempo, nos autoriza a voltar atrás, mudar de opinião e, fundamentalmente, desconfiar bastante dos que afirmam estar certos de tudo.

Ou como diria Raul Seixas: “Eu quero dizer agora o oposto do que eu disse antes. Eu prefiro ser essa metamorfose ambulante. Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo. Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo...”


Este artigo foi publicado originalmente em 2008, e levemente modificado para sua postagem neste blog.

*Se você ainda não acredita que os dois quadrados são da mesma cor, veja aqui



6 comentários:

  1. " ...o que sabemos nos aconselha a não confiar naquilo que ACREDITAMOS ver ou escutar".
    Acreditar e saber....tudo reside nas duas palavras. Eu só acredito no que sei e o que não sei procuro saber. Daí a minha dificuldade em manter a religião que recebi dos meus pais. Eu acredito no amor da minha mãe? Não, eu sei do amor da minha mãe. Estou pagando por ser um ex seminarista. Dizem que somos os piores.

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  2. Oi Hamilton, obrigado. Na realidade esses estudos parecem mostrar que nosso cérebro é muito confabulador. Faz teorias à partir de informações e lembranças que têm uma grande possibilidade de não corresponderem à realidade. Por isso, nossos julgamentos e nossas certezas devem ser sempre relativizados. Claro que em relação ao amor de nossos pais, na maioria dos casos nossas suspeitas devem estar corretas (espero!!).
    Abraço e boa semana

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  3. O parâmetro para a confiança é a verdade. Devemos busca-la sempre, ela é padrão dentro da conciência.
    Um abração!

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  4. Oi Alberto, acho que daria para escrever e ler vários tratados sobre a verdade e sua busca. Seja como for, parece que a "verdade" é uma ilusão temporária de um cérebro confabulador. Desconfio muito daqueles que dizem té-la encontrado.
    Na melhor das hipóteses acho que temos bons e maus motivos para acreditar nas coisas.

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  5. E complementando Professor, o sistema visual é o que mais sofre distorções por conta de seu longo e complexo processamento. O encéfalo vive corrigindo as informações errôneas que o processamento óptico iniciado na retina leva até o SNC (isso me remete ao Conta da Caverna de Platão). Portanto, quando quiser experimentar um determinado estímulo, avalie se este pode ser processado por mais de um sistema sensorial. Por exemplo, uma superfície irregular: confie mais no seu tato para experimentá-la do que em seu sistema visual. O processamento tátil é o mais direto e confiável de todos. Entretanto, lembrando que a integração de todos os sistemas de percepção é o mais adequado pra se formar a memória de determinado estímulo.
    Parabéns pelo artigo, mais uma vez! Abraço

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  6. Extremamente interessante a forma como nós humanos nos adaptamos às mais diferentes situações, e de fato isso se relaciona diretamente com a capacidade que nosso cérebro tem de interpretar as coisas das mais variadas formas. De uma maneira ou de outra então, trata-se de uma relaçao dependente, já que nós vivemos das interpretações do meio em que estamos, e ao mesmo tempo, esse meio em que estamos, constantemente exige adaptações, e ainda sim, nosso cérebro é capaz de entender isso e mudar o rumo das coisas smpre que necessário ( na sua forma de ''tapar as falhas'',constantemente cria novas interpretaçoes para experiencias futuras). Seria essa uma forma errada de viver, ou apenas a nossa mente inconscientemente nos motivando a continuar a história? Se é isso ou não, viver literalmente de algumas ilusões se torna uma adaptação bem vinda algumas vezes. Na verdade não sei se é um raciocínio correto de se ter, mas achei interessante pensar sobre esse outro lado da coisa. Eu acredito nisso, ironico não? Acreditar algumas vezes pode ser não saber...é isso que meu cérebro interpretou desta informação! Interessantíssimo o texto Roelf. Parabéns!

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